30/07/14

... para um lanche pausado ...

... um dia fiz o exercício de pensar na memória mais antiga que tinha. passada a primeira que remete para o rosto e aceno da minha avó num momento depois de um almoço, fixei-me na mais nítida. era a hora do chá. sempre que me lembro da minha infância lá está o chá. sempre ao fim de semana. sempre numa sala que para mim ainda parece enorme. e a mesa posta. bonita. com chávenas de serviço inglês e doces. bolos e mais umas compotas coloridas. e umas coisinhas pequeninas onde cada um tinha a sua manteiga para os pães quentinhos que chegavam à mesa. lembro-me que era muito pequeno. naquele tempo, que já não é este nosso, era preciso estar sossegado à mesa. os crescidos diziam quando terminava para ser possível sair da mesa. pedia. era-me concedido. e ia à cozinha. a cozinha estava sempre mais fria que a sala. nunca percebi porque me recordo disto assim. mas no centro, debaixo de uma rede mosquiteira estava um bolo. sempre. pedia uma fatia. era o melhor do lanche. porque as regras estavam quebradas. porque era um sabor livre. e recordo um texto. agora...

"as pessoas deviam ter mais de uma vida ou, pelo menos, uma que pudesse também andar para trás de vez em quando. para corrigir o que saiu mal à primeira, aprender e saborear as poucas horas boas - tal como uma canção que quanto mais se ouve mais se gosta - e, sobretudo, para poder ir primeiro por um lado e depois por outro e depois, sim, seguir o caminho encontrado."...

viver todos os dias cansa, pedro paixão


bolo da boa memória
ingredientes
45 minutos
chá verde (de boa qualidade, em folha)
amêndoa laminada
farinha (3 chávenas)
açúcar (2 chávenas)
leite (1 chávena)
ovos (4)
óleo (3 colheres de sopa)
fermento (1 colher de chá)
margarina

receita: num tacho ferver o leite com o chá. fazer forte. deixar arrefecer. colocar num recipiente para fazer a massa do bolo os ovos inteiros, a farinha, o açúcar, o óleo e o fermento. juntar, frio, o leite com o aroma do chá.  misturar tudo até obter uma massa consistente e fazer bolhas de ar. untar a forma com margarina e polvilhar com farinha. verter a massa colocando no final a amêndoa laminada sobre a massa pronta para ir ao forno. levar ao forno a 200º durante 30 minutos. deixar arrefecer. retirar.
dicas: o leite com o chá deve ferver lentamente e ser feito para ficar com um aroma forte. servir com um chá gelado de frutos vermelhos no tempo quente e com um chá preto no tempo frio. realça o sabor suave do bolo.

... uma vez convenci-me que não sabia ou não tinha jeito para doces. desisti. mas a cozinha tem esse lugar de imaginação. tem a força de nos deixar vencer o medo. e de poder errar e experimentar. de poder voltar-se a viver outra vez. indo por outro lado. e foi o que fiz. estou a redescobrir esse mundo. dos doces. preciso aprender muito neste campo. mas como tudo, começo pelo mais simples. e por querer recuperar o sabor daquele bolo escondido na cozinha. de boa memória. de sabor suave. único. simples. porque nem sempre precisamos, para um lanche de fim de tarde, de um bolo complicado na forma e no sabor. às vezes queremos só aquela fatia roubada que sabe melhor do que qualquer outra. simples. assim. e com chá...

... dias com pressa ...

... às vezes os dias são mais rápidos. o tempo é roubado para as coisas para fazer. como se a urgência fosse mais um ingrediente a misturar ao imprevisto. é assim. nesses dias, tudo tem que ser mais rápido. até a impaciência chega mais depressa. é assim. dizem. e é assim que me recordo sempre de umas palavras que um dia li:

... "todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho de uma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar nos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais."...

levantado do chão, josé saramago


hambúrguer apressado
ingredientes (1 pessoa)
20/30 minutos
hambúrguer de vaca (fresco)
pimento verde
tomate
laranja
sal
pimenta

acompanhamento
nozes
maçã verde/reineta

receita: frite num fio de azeite o hambúrguer temperado com sal e pimenta (a gosto). deite, enquanto frita e sobre o hambúrguer de forma homogénea, o sumo de meia laranja, virando o hambúrguer ao longo da fritura. retire e reserve quente. salteie o pimento verde e o tomate no mesmo molho até ficarem a gosto. retire e sirva no pão. acompanhe com nozes e maçã reineta.
dica: corte o mais fino possível o tomate e o pimento. fica mais saboroso se o hambúrguer for bem passado.

... muitas vezes, quando nos perguntam sobre o que se comeu num dia de pressa, diz-se sempre: qualquer coisa. muitas vezes de pé. muitas vezes em tal pressa que nem percebemos bem os sabores. tudo misturado mata a fome e por isso serve. e por isso este é um desafio à memória em dias de pressa. em dias em que o pensamento é reservado para todas as outras coisas. mas importa sempre o pensamento. e o sabor dos dias. mesmo estes. e por isso este reconforto de sabor forte e diferente não se esquece. lembra que esse dia, apressado, passou. fica na memória. para os outros. os que estão guardados na memória do que somos. por serem longos. e imensos. e sem tempo...

29/07/14

... dos simples sabores...

... quando eu era pequeno lembro-me de um sabor único. era a limonada. nas tardes de verão. no alpendre da casa da minha tia. a meio da tarde. com pão-de-ló da minha mãe. fresca, num copo raso mas fino. cheio de pedacinhos de limão a flutuar. e doce. nunca mais recuperei aquele sabor. por muito que tenha tentado. nunca mais fiz limonada igual por isso mesmo. porque nunca será igual. mas, há uns anos, inventei esta. porque li um poema...

..." ficou da infância a febre
de correr parado
pelas estradas

podes chamar-lhe versos
são viagens

ficou na infância a fisga
de arremessar ao vento

podes chamar-lhe versos
são pedradas"...

daniel filipe


limonada preguiçosa
ingredientes (1 copo)
5 minutos
uma rodela fina de limão
uma rodela fina de laranja ou tangerina
hortelã
açúcar mascavado
pau de canela
gelo

receita: corte uma rodela fina de limão. corte uma rodela fina de laranja ou tangerina [preferencialmente]. num copo coloque as rodelas. coloque uma ou duas colheres de açúcar [a gosto]. coloque uma folha ou pé de hortelã. deite água fria. junte duas ou mais pedras de gelo. sirva com um pau de canela a acompanhar o copo. 
dica: desfaça o limão e a laranja/tangerina com o pau de canela e beba fresco.

... é daquelas coisas que se torna uma brincadeira para o fim de tarde. esta bebida é uma brincadeira. lembra-me o poema de ary. "minha laranja amarga e doce/meu poema". é um regressar ao poder brincar com aqueles pedacinhos do limão que ficam na limonada. ver o copo mudar. ver o sumo nascer. e provar. saber o sabor da frescura do que vamos fazendo nascer entre conversas. é sempre recomendado servir acompanhado com uma boa história de quando éramos pequenos. ajuda ao sabor. porque é fresco. porque é só uma simples e leve limonada de laranja. ou laranjada de limão. ou qualquer coisa preguiçosa que o tempo quente acolhe sempre muito bem..

... das coisas e da mesa ...

... aprendemos a perder o hábito do ritual da mesa. de estar à mesa. de conversar à mesa. a mesa torna-se um local de espera. a espera é o tempo que passa mais devagar. que é preciso encher com palavras. com coisas ditas para terem o sentido do tempo que podemos gastar somente nisso. a saborear as palavras dos outros. no tempo em que as coisas eram assim.

... "dispõe a mesa e compõe a superfície: duas toalhas individuais, sobre elas os pratos; copos em túlipa, finos, de cristal; talheres. desconhecia tudo o que possuía: nunca abrira gavetas; a mulher tratava de tudo: dá-me as meias; onde está a camisa? olha, quero levar hoje o pulôver verde. a casa: o território de que ela era a proprietária absoluta."...

no interior da tua ausência, baptista-bastos


maçã da ausência
...ingredientes (2 px)
10 minutos
duas maçãs
canela
mel
nozes
limão/sumo

receita: corte as maçãs em pequenas lascas finas. disponha umas sobre as outras passando por sumo de limão. polvilhe com canela. sobreponha com um fio de mel. acompanhe com nozes partidas em pedaços bruscos. 
dica: se puder e estiver tempo quente coloque as maçãs no frigorífico algum tempo antes para que fiquem frescas e sirva imediatamente.

... sempre pensei no que podia saber cada refeição deste livro. baptista-bastos tem esse condão. de nos levar ao interior da ausência. do que foi e deixou de ser. porque a vida é feita de rituais. de hábitos. e lembrei-me deste sabor. é como se fosse o outono que chega à boca em forma agridoce. em forma de sabores que se misturam mas deixam sempre, no final, essa sensação de não ter ficado quase nada. ficou uma ausência. foi isso. e imaginei isto. para este livro. que seria sempre esse sabor a qualquer coisa que falta. a um desejo de regresso. a uma espera. como se tal fosse possível. porque há um sabor para cada coisa. mesmo quando essa coisa é o interior da ausência.

28/07/14

... nada se faz sem uma sopa...

... ainda me lembro de quando fiz a minha primeira sopa. foi exactamente esta. esta não, uma igual. igual, não. pior. foi uma experiência com o que tinha por perto. e as coisas foram ganhando sabores novos. como a vida. que é feita de tantas misturas...

esta sopa nasce de um poema. 

só para mim
(luis miguel nava)

«queria ter o sol só para mim, tê-lo de forma a dele poder de vez em quando ceder parte apenas a um dos meus mais íntimos amigos.»


sopa dos amigos
... ingredientes (2 px)
30 minutos + 15 minutos
2 batatas médias
1 cebola pequena
meio nabo pequeno
um alho
uma cenoura média
abóbora, um pedaço
espinafre fresco
grão cozido

receita: fazer uma base com a batata, a cebola, o nabo, o alho, a cenoura e a abóbora. juntar a água. sal qb. um fio de azeite. deixar cozer lentamente uns trinta minutos. desfazer até ficar em creme. juntar o espinafre em folha fresco e o grão. a gosto de quantidade. cozer por quinze minutos. servir quente.

...uma sopa nunca é só uma sopa. é a abertura do sol na mesa. é o ganho do paladar. a pausa que trava o correr dos dias. é o instante em que nos instalamos. em que ficamos na mesa. em que sabemos que o banquete nos espera. é o espaço do sonho. o lugar do conforto. e sempre vi assim a sopa. esse pedaço de conforto que, à mesa, entregamos aos nossos mais íntimos amigos. como o sol. e esta sopa é mesmo como o sol numa floresta perdida numa encosta qualquer. conforta-nos. abre o momento para o que nos possa esperar. uma conversa. uma gargalhada. ou uma confissão. é um momento de conforto. de reconforto. deve ser comida lentamente. sem pressa. e nada mais...

... das nove para as dez...

... abertura.



... "- o teu mundo não me interessa. eu vim contigo porque me convidaste para jantar e eu não sabia onde jantar hoje.
embora ainda fosse relativamente cedo imaginei que ela poderia ter fome. disse-lhe:
- esperas aqui um bocadinho que eu vou pôr um pouco de arroz a cozer para comermos com o frango. está bem?..."

catarina ou o sabor da maçã, antónio alçada baptista

... é com uma mudança que tudo começa. e uma memória. o banquete de kierkegaard. lido há muitos anos. nunca esquecido. e sempre, em mim, tive essa ideia em suspenso. pode um livro ter sabor? pode um poema ser refeito com ingredientes que aflorem todos os sentidos partindo do paladar? podem os escritores ter imaginado cada prato, cada cheiro, cada sabor das suas criações? pode ainda uma refeição ser um lugar de conversa e debate de ideias? e assim nasce esta aventura. este blog será tudo isso. um diário de um homem que vai estudar para ser cozinheiro. um dia. ou inventor de pratos onde o mote seja sempre a arte. uma pintura. um poema. um espaço. qualquer coisa servirá para uma criação. por isso aqui não vai encontrar aquelas receitas de todos os dias. vai encontrar coisas simples, para todos os dias, mas com o pretexto de levar uma história para contar. um livro para ler. um poema para dizer, uma pintura para comentar. e este será também o espaço de um percurso. do que se vai aprender nos próximos tempos. do que se fazia sem saber. ao que se fará aprendendo. será uma viagem. por lugares. espaços, comidas. sabores. saberes. encantamentos. será o que tiver de ser. mas será sempre, original. uma viagem, das nove para as dez.