29/11/14

... saber, sabor ...


... estava a olhar para uma tangerina. gosto da imperfeição. ou será que é ao contrário? estas, colhidas da árvore, "biológicas" como agora lhe chamam, serão as perfeitas e as outras, reluzentes, vendidas num qualquer hipermercado, com selo de marca, as imperfeitas? isto tudo porque me lembrei da minha mãe que fazia cozinha molecular e eu não sabia. é que esta coisas dos nomes modernos que se dá às coisas sempre me espantou. a minha mãe fazia uma coisa fantástica que era "desgustada" com imenso prazer. era simples, dizia ela, mas nunca parecia. eram as gelatinas de laranja. espremida a laranja era aproveitada a casca como "base" e o sumo, junto com gelatina, ia a arrefecer depois de uma boa dose de açúcar misturar tudo numa calda de cheiro sempre encantador. depois, frio. e servido na casca a laranja parecia outra. magia. ou simplesmente era surpreendente. e a tangerina está a prender-me o olhar. esta coisa de existirem as coisas fora das suas épocas sempre me fez confusão. a moda das coisas sempre presentes é fruto de uma modernidade que reclamamos cada vez mais. gelados no inverno, chá quente no verão. é a nossa forma de sermos pequenos deuses. ou de como a ciência nos deu poderes até aqui reservados ao segredo das coisas do mundo. tudo isto porque estava a pensar nestas modas. nas tendências. nessas coisas todas que a leitura apura em forma de dúvida. cada vez que nos afastamos das coisas da natureza, temos como seres humanos, essa certeza absoluta. que somos senhores de um saber que dobra a própria realidade das coisas. e depois, quando procuramos o sabor, precisamos voltar a respeitar o tempo das coisas reais. é tão curioso este jogo de rato e gato. é talvez a nossa mais natural afirmação como seres humanos. estamos divididos nisto. é curioso. muito curioso. a verdade é que, ainda bem que somos feitos de ambas as coisas. definem-nos. e é isso mesmo...

... surpreender ...

28/11/14

... refazer saberes...


... semana 6 no fim. ou 7. depende de onde começa a contagem. não importa. último dia da semana. há um cansaço que se acumula. parece estranho mas não é no cansaço que está o peso dos dias que correm. é no mudar de mundo. de mundos. de realidades. de rotinas. é uma mudança muito mais pesada do que pensava. e quando não se tem ninguém que oiça, ainda mais. é tudo tecido num silêncio que define as coisas feitas assim. sem compreensão. mas há, depois momentos que são lugares de espanto. de fascínio. e ouvem-se, em sala, ecos de um "ah... é assim". ou "afinal é simples". ou "não sabia, não conhecia". rematados com um "que giro". e depois as ideias conjugam-se. diz-se "e se fosse possível misturar isto ou aquilo" ou fazer mais isto e mais aquilo. e o chef que coordena com mestria uma aula teórica sobre cozinha entra no jogo. sorri. acompanha o pensamento. quase que é possível sentir as ideias. o que se queria ver ou fazer. um "momento" para pensar cozinha bem feito é feito assim. misturam-se coisas, substâncias, com memórias, sensações e emoções. e os desafios surgem em forma de sabores por criar. imagens que se formam. é muito curioso tudo isto. porque o cansaço fica esquecido. a mudança é acompanhada pelo retomar do fascínio perdido. pela vontade. pelo encanto. e talvez, mais do que saber coisas sobre cozinha, era isso o procurado. em segredo. nunca dito. a cozinha tem destas coisas. provoca em cada pessoa qualquer coisa de único. nem que seja o confronto consigo mesmo. comigo mesmo. nisto tudo...

27/11/14

... confeccionar ideias ...


... somos feitos de hábitos e de ideias. e cozinhar é como criar um "momento" de jazz. gosto de aulas onde oiço isto. jazz. sim, ouvido. teria escolhido esta se fosse por "discos pedidos". sou mais blues. mas isso é estado de alma. "e nada há pior do que um mau músico de jazz". é que "ler" uma receita é como ler uma partitura. mas depois há tudo o resto. as mãos de quem cria. de quem traduz o que está ali acessível a qualquer um mas que alguns tornam real de forma mais encantadora do que outros. é bom quando uma aula é assim. pensar para além do óbvio. questionar. ser um desafio que obriga seguir o pensamento. um risco. não arriscada, mas num risco. num traço de pensamento. e isto também é aprender cozinha. pensar nisto. nisso tudo. no hábito que nos faz. nas rotinas. naquele prato que todos nos lembramos tanto ou mais do que aquele um dia experimentámos por ser "diferente" de todos os outros. somos feitos disto. e nós que estamos a aprender a cozinhar temos que pensar nisto. se somos miles davis ou chet backer. ou se somos músicos de orquestra. tenho um amigo na casa da música que fala muito disto. dessa coisa do ser músico. é difícil quebrar a ordem. tanto como é seguir os outros. é uma questão de perfil. ou de desejo de criar. ou de segurança. ou de saber. penso sempre no que um dia um mestre ensinou. só poderás criar quando tiveres aprendido muito mais do que achas que queres saber. e comigo foi assim, mesmo. e penso que será assim também nesta coisa do cozinhar com história e histórias. podemos ser músicos de orquestra, a solo ou de jazz. na cozinha também é assim. é tudo uma questão antiga, para além do simples acto de cozinhar. é uma definição pessoal. de personalidade. de felicidade. quem somos está sempre espelhado no que fazemos e como fazemos. mas só não podemos ser o "mau músico de jazz". e isso foi o maior recado aprendido até agora nesta aventura...

26/11/14

... lugares de sabores ...


... água, farinha e margarina. o resto é ciência. ou arte. ou as duas coisas juntas. quem ensina centra-se no como e no porquê. quem aprende está suspenso na pergunta: para quê? sempre foi nesta distância que se mede tudo nesta coisa do ensinar e do aprender. é assim na cozinha também. mas há algo de fascinante que se descobre de aula para aula. o criar. seja um corte que não se sabia fazer ou um doce que não se sabia a origem e a forma de o criar. aprender isto é aprender a brutalidade das coisas. e ao estar no meio de um batalhão de gente a cozinhar percebi isso. olhei em volta e percebi o que diziam quando diziam que era preciso "estofo". é quase como uma desordem de guerra. de uma brutalidade plena. mas há nisso toda a beleza das coisas por descobrir. é só um instante. quase como aquele instante em que olhando uma pedra o homem a acha feia. bruta. em bruto. e depois, dela retira algo. cria algo. é visceral. instintivo. de sobrevivência do belo sobre o bruto. a verdade é a beleza. mas a beleza não é a verdade. e da brutalidade de tudo vem essa certeza. porque é feio, tudo, em determinado momento. não há beleza alguma no processo que não seja o encanto escondido do que se revelará. na espera. e pedindo para eu descrever esta aventura disse: cozinhar é a arte da espera pela beleza do lugar dos sabores. não sei se faz sentido. para mim, faz. porque quando aprendo, sentado ou em processo de actividade em bruto, sinto essa necessidade. esperar. e ter calma. saber que as coisas se revelam e criam num tempo certo. que não é preciso acelerar. porque do mais rude os ingredientes, da sua conjugação, nasce sempre algo surpreendente. a surpresa é mesmo isso. o retirar do óbvio algo mais. e quando várias pessoas fazem coisas em conjunto sem ver o final essa noção exacerba-se na lógica e no enganar dos sentidos. parece tudo desligado. suspenso. imperfeito. desastrado. mas no fim, como se fosse possível ser tudo assim, revela-se a perfeição das coisas guardadas em bruto. e sente-se esse sabor rude vencido pela dedicação e pelo trabalho das mãos. vencido na forma. vencido pela beleza em que se torna. suave. amansado. feito. e é isto que estou a aprender e a ver. em cada aula que passa. seja ela qual for...

22/11/14

... um arroz, doce ...

... a minha mãe fazia o único arroz doce digno desse nome. fazia e faz. fica o arroz naquele ponto especial em que ao trincar ficamos com a sensação de verdadeiramente estar a comer arroz, mas doce. é estranho mas é curioso. e sempre tentei fazer esta iguaria e sempre me saiu mal. até hoje. hoje penso que, não tendo a mestria nem esse segredo, consegui fazer um arroz doce que podia apresentar em qualquer lado. e enquanto o fazia lembrei-me do livro lido nos tempos de estudo na faculdade. chama-se: um prato de arroz doce. é de teixeira de vasconcelos. é uma obra/retrato. isto é, é de lá, sem o sabermos que vem a imagem que temos de um episódio da história de portugal a que vulgarmente chamamos de "patuleia". mas a coisa não bate com o título. porque há no arroz doce qualquer coisa de fofo ou suave que se estranha em comparação com esta coisa da história. e por isso, um excerto me apetece partilhar. sobre esta coisa do fofo. só porque sim:

"... um dos grandes equívocos da segunda metade do século xx foi, sem dúvida alguma, a alcatifa. as alcatifas são, sinteticamente, expansões lanudas de grande monotonia, e vulgaridade. privam os pés de contactar directamente com a dura realidade do soalho, habituando o homem a uma falsa impressão de onde pisa, criando nele o culto fútil e amaricado do «fofinho».

a causa das coisas, miguel esteves cardoso 


arroz doce em tons de branco
45 minutos
ingredientes
250 ml água
600 ml leite
150 gr de arroz
50 gr de manteiga
150 gr de açúcar
pau de canela
sal
limão

receita: num tacho largo coloca-se a água com o pau de canela, raspas de limão e uma pitada de sal. quanto estiver a ferver coloca-se o arroz mexendo para cozer durante cinco a sete minutos. leva-se ao lume, ao mesmo tempo que o arroz coze, noutro tacho o leite e a manteiga que devem ferver. quando a manteiga derreter e ligar com o leite junta-se ao arroz e deixa-se cozer mexendo sempre muito bem. quando o arroz começar a "despegar" do fundo do tacho junta-se o açúcar e envolve-se. retira-se a canela e o limão e coloca-se nem taças. 
dica: decore com canela. pode juntar no preparado um aroma de baunilha para um sabor um pouco diferente e mais "fresco". 

... a verdade é que a banalização das coisas boas retira-lhes o que de único cada uma delas conserva em si mesma. o arroz doce é daquelas sobremesas únicas e que representam, em tantos contexto sociais e literários imagens determinantes do que é a convivência comunitária e história em portugal. pensar o que comemos e como comemos é uma tarefa única. banalizar o que temos de único torna-se destruidor de uma cultura cada vez mais frágil num mundo cada vez mais igual. seja pela sensação do «fofinho» como ironicamente miguel esteves cardoso escrevia nos anos noventa, seja pela memória que apagamos ou conservamos do que é a essência de uma coisa. nenhum outro prato pode ter esta amplitude como o arroz doce. porque, nenhum está tanto no nosso sangue e no nosso corpo como este. e por isso, é nosso imenso dever nunca o tratar mal. porque ele é, na definição de si mesmo, a nossa memória em jeito de sabor... 

... guardar, contando ...


... jean baptiste grenouille. o nome do anti-herói do livro que li, há uns bons anos, numa viagem entre o porto e lisboa de comboio. foi o livro que li em menor espaço de tempo. depois vi o filme. não gostei do filme. só gostei de uma coisa. do fabuloso papel e interpretação de dustin hoffman. aquela "encarnação" parece fácil mas não é. é um imenso trabalho de actor. e jean baptiste grenouille tem o mérito de ter sido criado pela mão da fantasia. o livro tem isso de magistral, não o sendo enquanto obra. criou esta criatura. deu-lhe vida pela mão dessa capacidade de se ser fantástico. e ontem, liguei tanta coisa em três horas e umas outras de aprendizagens já feitas em torno desta coisa da cozinha. falava um professor na memória. na importância da memória. e eu que dediquei tanto tempo da minha vida em torno do pensamento sobre a mesma revi-me na frase: temos que saber de onde viemos para saber para onde vamos. e na cozinha isso é fabuloso. porque a conversa tem a beleza de todas as coisa quando é feita sem preconceitos. o chef que orientava umas boas horas de verdadeiras aprendizagens falava do tempo em que as sopas ficavam horas a "apurar". ou mesmo os pratos principais. e já escrevi isso aqui. esse tempo em que as coisas estavam a ganhar vida. para serem servidas. degustadas pelos comensais em momentos de partilha da mesa. e não foi assim há tanto tempo. vinte. trinta anos. e ainda se faz. menos, muito menos, mas ainda se faz. estou a recordar uma sopa de castanha que vi fazer e comi para os lados das terras do demo que levou vinte e quatro horas a fazer. e penso noutra conversa tida com outro chef. de uma coisa lida, que também já aqui registei: um cheiro sentido na cozinha é um sabor que se perde. e penso neste movimento da procura pelo sabor que "expluda" na boca. da pureza do sabor das coisas. e cruzo tudo isto com umas apresentações feitas por colegas de aventura. um dos mestre desta "cozinha contemporânea" citado por um desses colegas de aventura disse: "mother nature is the true artist, and the chef is the technician". este regresso às origens da humanidade é tão ou mais curioso como a ousadia do estar horas à espera de "apurar" um sabor. e perdi jean baptiste grenouille por um bocadinho para o voltar a encontrar aqui na minha linha de pensamento. porque uma coisa de muito interessante aprendi ontem com o chef que até agora mais me ensinou sobre isto de olhar, ver e pensar a cozinha. tal como esta personagem fantasiada que procurava a essência do perfume único (mesmo por meios inquietantemente proibidos) também eu acho fabuloso esse lugar do sabor único que cria memória. é aqui que reside a essência da coisa mágica a que chamamos: cozinhar. se a ousadia de criar um sabor misturando todos os outros de forma a criar um lugar de memória, também a procura da pureza do sabor dos alimentos o pode ser. é tudo uma ousadia plena. desafiar a mãe natureza. ir lá buscar a inspiração. perceber que o sermos humanos nos dá a capacidade de juntar as coisas dadas e recriar a obra-prima. e quando um conjunto de aulas nos faz pensar assim, então sabemos que, mesmo que o mundo inteiro pareça ser o mais imperfeito dos lugares teremos sempre isto para nos suspender no tempo e no modo de saber e saborear as coisas...

19/11/14

... desta loiça, deste tempo ...

P

"aprendi a não tentar convencer ninguém. o trabalho de convencer é uma falta de respeito, é uma tentativa de colonização do outro."
josé saramago

... esqueci-me do título no gráfico. de preços de produtos. no "exame" final. daquelas coisas que escapam. mas que recordam outras. recordam o negócio. gosto sempre de ouvir o professor dizer para a turma: a cozinha e um restaurante é um negócio. eu não levo para o lado do mercado. levo para o lado da negação do ócio. porque o é. a negação do descanso. e tem sido. esta aventura tem sido isso mesmo. uma profunda negação do ócio que retira todo o tempo e toda a forma de ver o mundo canalizando-a para esta coisa do que comemos e como comemos. e kierkegaard que me trouxe até aqui, acompanha-me. o banquete. do tempo em que a conversa era feita no reino da mesa. e agora, nem conversa, nem reino. resta a mesa. e como a transformar num lugar de prazer. sempre gostei muito desta palavra de que tantos fogem. o prazer. é que é mesmo disso que se trata quando falamos de descobrir novas formas de criar neste tempo das coisas pré-fabricadas. redescobrir o prazer em detrimento do gosto. do gosto por ser "sem sabor". e o tempo de hoje, nisso ajuda. é ver o correr dos dias e das pessoas. o que comem e como comem. o que comemos e como nos sabe. há um "efeito normalização" e um "efeito plasticização". o igual, torna o paladar, como todos os restantes sentidos, adormecidos e habituados ao mesmo. o constante. o corrente. o ordinário. e por muito que isso seja fonte de segurança dentro do que sei certamente que gosto e não gosto, acompanha, também, o correr da vida de tantos. igual. certa. constante, habitual. o mito do eterno retorno ou a legitimidade da repetição histórica permitem a compreensão do mundo, eu sei, mas são sempre, também, as rupturas que trazem as virtudes ou a falta delas, nos dias que passam. e hoje, mais do que nunca, cozinhar tem que se revelar uma experiência. mais do que um acto. uma experiência. porque os produtos estão mais acessíveis. mas o tempo, esse senhor imenso, nega o acesso a esse lugar de criação. ao tempo do ócio. que é condição fundamental para pensar que os sabores que perdemos são aqueles que requeriam, mais do que ingredientes fabulosos, o tempo para os confeccionar. o tempo de dedicação à coisa. envolto em conversa. misturado com os cheiros das coisas. e é essa cozinha que procuro. que com uma colherada de qualquer repasto, aquela memória antiga, aquele lugar, esse tempo possa vir a ser sentido como vivo. para reavivar a alma. e as forças. e os dias feitos de recordações. talvez lá chegue. um dia.

17/11/14

... coisas doces ...


... sempre fiz um arroz doce horrível. hoje, até ficou bom. foi uma "prova rápida". mas assim pareceu. a decoração é "vintage". feita por um colega/amigo. deve ser por isso, em parte. por ser feito a várias mãos. há nisto a importância de todas as coisas. por várias razões. acho que todos devem perceber que uma cozinha funciona pela identidade e ligação entre quem lá está. a cozinhar. tem uma "assinatura". mesmo que um chefe a "comande". e hoje, por uns segundos, enquanto ninguém olhava, eu vi. e lembrei-me dos passos da olga roriz. da dança. do movimento. deve ter sido por ter passado alguns dias a ouvir e ver isto. naquela dança das coisas. dos gestos. da coordenação. de dez ou onze seres humanos num espaço quadrado pequeno que circulavam entre si e entre as coisas. é curioso, tudo isto. tanto ou mais se juntar a isso uma coisa que me faz muito bem. a superação das barreiras que ergui, há muito tempo, sobre a cozinha das coisas doces. dizia eu ao chefe que nos ensinava que tinha lido que os aromas que existem na cozinha são sabores que se perdem. e apeteceu-me a poesia de vinicius que dizia que eram sabores que se libertavam do julgo inquietante do homem que os procurava. a verdade é que, ao fazer estas receitas que pareciam marcadas pelo fracasso por serem saídas das minhas mãos percebi essa imensa razão que desfaz as montanhas que esperam ser movidas. a certeza que podemos sempre superar aquilo que pensamos que não somos capazes de fazer. para isso só precisamos de ser ensinados. deixar que nos ensinem. e partilhar isso como os outros, com quem estamos, em processo criativo. não querer ainda ser autor. ser equipa primeiro. autor, depois. depois de aprender. muito. experimentar ainda mais. saber, ainda mais. para que haja nisso a coerência sustentável do caminho. e assim, mesmo que seja só arroz doce, creme de ovos, crepes e coisas que tais, seja isto tudo a base do saber das coisas por criar. para ser, quem sabe, um dia, tudo deliciosamente inquietante... 

12/11/14

... das coisas soltas ...


... no meu tempo as coisas tinham um nome. temperamento. e gosto tanto desta palavra. cada professor, cada chefe, com o seu temperamento. eu sei, já não se usa. já ninguém fala assim. mas dei por mim a pensar que tinha escolhido enveredar por esta aventura da cozinha para poder ter uma aventura onde as pessoas ficassem mais fora da equação. nunca fui muito bom com pessoas. e no entanto, sempre estive rodeado delas. queria "falar" com as coisas. pelas coisas. pelo que comemos e como comemos. sem ser preciso falar. gosto desta ideia. não sei a razão pela qual gosto, mas gosto mesmo. sou, por natureza, uma pessoa muito observadora. não gosto de fazer ou estar sem antes ver. e aprender os truques com alguém que faz as coisas há muito tempo é sempre ter essa capacidade. de ver. há, nisto do cozinhar, uma pressa de todos de correr para a prática. nisso sou ao contrário. não gosto de fazer por fazer. quero ver como se faz. e depois de perceber, tentar. repetir vezes sem conta até acertar. sempre foi assim em tudo. e isto faz-me regressar aos tantos que me ensinam nestas primeiras 5 semanas que já passaram. todos eles ensinam alguma coisa só por serem como são. por ensinarem como ensinam. cada um de sua forma. com o seu modo. e isso é algo que aprendi já. se o "amor" pela escola é imenso, a identidade de cada um é uma lição. para nós que estamos do lado de quem aprende. porque isso será o nosso dia a dia numa aventura destas. quando não estivermos num grupo que agora se começa a conhecer. lidar com o outro. os outros. muitos outros. e parece que não, mas isso, essa forma, esse tempero, esses temperamentos são a maior lição de todas. gosto disso. isso e fazer cortes de batata e caramelos por acaso... 

10/11/14

... criar cozinha ...


... dei por mim a pensar. a conversa era sobre cozinha tradicional portuguesa. e eu gosto mesmo muito destas conversas/aulas. que não se pode mudar as coisas e não mudar o nome. ou mais do que isso. que a memória que temos dos nomes das coisas é tão ou mais importante que as coisas em si mesmas. e na cozinha isso é tão relevante como tudo o resto. e estava a pensar na primeira pessoa que inventou um prato que hoje chamamos de "tradicional". contemporâneo no seu tempo, deve ter sido (quem sabe) apupado por tal heresia. ou a alheira, que escondia uma religião/crença que acabou por ficar. pendurada em fumeiro "convertida" em falsos cristãos-novos. e misturava isso com uma conversa tida de manhã, sobre escoffier e a forma como mudou a cozinha. em conversa, uma vez dizia eu numa aula que o que ford tinha inventado de importante não tinha sido o carro. tinha sido, de facto e no modo, o modelo de produção. as linhas de produção. e eu que sou um fã de orwell só me lembrava de descrição do proletariado numa das obras que já aqui coloquei uma vez. é que estes "transformadores" do mundo são pessoas do seu tempo. no seu tempo. que com o que a tecnologia lhes concedeu perceberam que a cozinha não podia ser mais o espaço do intimo e do belo e precisava massificar-se. e ouvi, há duas semanas, um professor que me surpreende sempre dizer uma frase que adorei: "nunca fomos tão multidão como hoje". e isso coloca novos desafios à cozinha em si mesma. e a cada um que agora tenta inovar, criar, distinguir-se no meio da multidão. somos 7 mil milhões de outros. e temos que comer. temos que ser alimentados. mas temos também que redescobrir o sentido da cozinha para além deste primário sentido. precisamos encontrar o prazer e a descoberta. e dar sentido a tudo isto. porque o futuro é já este tempo que passa. e a tradição pode nascer agora. só é preciso desafiar o hoje. aprender e criar.

06/11/14

...é bom, assim ...


"que ninguém se engane: só se consegue a simplicidade através de muito trabalho." 
clarice lispector 

... semana 4. aulas. michel giacometti surgiu-me em pensamento. quando um professor falou de maria de lourdes modesto e da "bíblia" chamada "cozinha tradicional portuguesa". pensei por um instante que seria, talvez, preciso voltar a correr o país de uma ponta à outra para uma nova recolha. ver as mudanças. o que se ganhou e o que se perdeu. seria interessante. sou sincero, gosto imenso de uma aula bem dada. uma aula, uma lição. e quando li no programa: controlo de custos e engelharia de menus pensei: ai pobre de mim. e agora, sou também sincero, depois de uma aula que antecede em que, em inglês se fala de tudo e de restaurantes, conceitos e modelos com mestria de quem orienta, vem a aula que me surpreende sempre. é fundamental existir um sentido crítico fundamentado para quem dá aulas. e gosto dos livros, das histórias. do saber partilhado sem reservas. de uma visão do e para o mundo. de uma antecipação (dentro do possível) do futuro. do ensinar a ser e a pensar criticamente. do olhar para ver as coisas. e faço uma viagem, em silêncio no meu canto. da júlia que julguei que ganhava o óscar também, ao desenho de um menu pelo bom senso e bom gosto. e lembrei-me da beleza do menu do paquete amélia que está na casa museu de condes castro guimarães em cascais. há aulas assim. que me fazem viajar no que sei e vivi. o que conheci. até o que aprendi. e terminado mais um dia, de mais uma semana nesta aventura, percebo que é urgente perceber uma coisa. uma coisa simples mas muito importante. cada sabor que conhecemos teve um nascimento, num tempo, num espaço, em alguém que o pensou. e é sempre determinante procurar conhecer isso. a cozinha pela cozinha somente levará sempre a quem a faz a uma repetição contínua da criação de outros. do modelo de trabalho de outros. dos sabores de outros. e, tal como uma lição pensada, bem dada e que fica na memória exige a mestria que até "parece simples", o domínio da arte de fazer cozinha exige ainda mais. porque para além do saber há, de facto, a arte acrescida da história. e da memória. e isso sim, é um desafio imenso. uma aventura. amanhã há mais. para fechar a semana. depois, tenho mesmo que tirar um bocadinho e experimentar. ir procurar esses sabores, provando que é possível colocar num prato tudo isto, o aprendido e o que pensei um dia saber para além da memória simples das coisas...

05/11/14

... querer algo ...



... a minha mãe sempre me disse que tinha que canalizar o meu lado criativo para alguma actividade. e ao longo da minha vida, até hoje, defini um princípio. procurar essa coisa. essa actividade. essa distracção. esse espaço ou ocupação para a mente. a verdade é que tentei quase tudo. há coisas que não gosto. outras que tentei, estudei, fiz. ocupei-me delas o tempo necessário para, nelas, ser bom. dominar. conhecer. saber como fazer. acho que isso passou para a vida. inteira. um certo perfeccionismo. um tentar saber tudo sobre e como fazer o que quer que seja. enquanto muita gente se contenta em saber as coisas "pela rama" eu sempre perdi imenso tempo com as perguntas: porque e como? é estranho isto. sou incapaz de me meter num caminho sem tentar saber tudo. o máximo possível. é por isso que nunca fui ou serei bom a nada. perco demasiado tempo a procurar saber tudo que me esqueço de saborear o prazer de fazer as coisas sem esse lado. tenho, para mim, a máxima de que para se conhecer alguma coisa é preciso saber como a conhecer. e isso é a eternidade das coisas. porque nunca se sabe tudo sobre uma coisa. há sempre algo mais para descobrir. e isto na cozinha é de uma beleza imensa. a verdade é que o meu tempo ainda é muito pouco para estudar tudo. mas tenho tirado um pedaço de tempo para o fazer, todos os dias. sento-me e vou ler. nem que seja num intervalo de cinco minutos. e vou procurar. como se comia na idade média. o que se comia. como se confeccionava. e depois dou um salto à rússia ultra moderna para ver o que se saboreia hoje por lá porque este é ainda um lugar que nós, ocidentais, achamos fechados. e na ásia? como se comia há vinte anos? e a revolução espanhola feita no prato. recordo livros lidos, conversas por email com umberto eco ou conversas de café ou pausa com os professores na universidade de letras em coimbra. o pão. a culpa da revolução francesa foi do pão. e há mesmo na história do pão quem diga que é sempre este alimento que está na base das mudanças sociais na história da humanidade. perco-me a tentar saber tudo. gosto imenso da ideia de ginzburg que a idade média, tardia, representou a maior revolução alimentar de que tivemos memória. dos conventos nascem os doces e a carne comida como alimento sem e com pecado. e penso. penso que cada prato que um dia farei tem que ter isto. estes sabores. estas memórias. esta força. quando me pedirem a minha assinatura de um prato eu terei que saber explicar tudo o que lá coloquei e porque o coloquei lá. há nisso, aquele lugar que sempre procurei. onde colocar o que sei e o que posso criar. e isso tem uma beleza infinita. por ser assim, tão simples...

04/11/14

... nem sempre ...


... haveria de chegar o dia em que eu perguntava a mim mesmo, num segundo de alguma (in)sanidade: o que é que tu estás aqui a fazer? era mais do que óbvio. surgiu hoje. também por uma razão mais ou menos simples. tinha estado, no fim de semana, numa amena partilha de ideias. daquelas discussões infinitas de que gosto muito. da razão das coisas. pensado, com força de pergunta e pensamento colocado na resposta. o pensamento tem um sabor único quando é desafiado. e hoje, enquanto cortava uma cenoura esta pergunta surgiu: o que é que tu estás aqui a fazer? durante uma semana fui questionado por vários dos professores e chefes que orientam as aulas: o que espera disto? não tive uma resposta clara. ouvia os meus colegas falar de futuro. de paixão. de carreira. eles, na sua maioria jovens, podem ter tudo isso. e eu também. mas há uma diferença. é que eu chego a meio da vida à cozinha. a este tipo de cozinha, pensada, desenhada pelas mãos mas que precisa de uma estruturação para além do gesto de mão para ser diferenciadora. eles começaram antes. ou podem agora fazer o caminho em contínuo. é diferente voltar para trás e ver as coisas já lidas, já vistas, já pensadas, já esquecidas voltarem todas. a cozinha tem esse poder. da memória do sabor. e volto ao meu pensamento. à pergunta. enquanto escrevo procuro uma resposta. talvez esteja naquilo que disse sobre a paixão uma vez. não é paixão que tenho pela cozinha. é dedicação. como tive por outras coisas que estudei, investiguei e às quais dediquei quase toda a minha vida até hoje. com muitos dias e muitas perguntas como esta que agora, hoje, fiz a mim mesmo. e é nessas duas coisas que acho que posso suportar a ideia de continuar. que a paixão se esgota mas a dedicação é aquilo que abre o caminho mesmo quando os dias são estranhos ou menos felizes. e que o pensar é tão importante com o fazer. por muito mais rápidos que os meus colegas sejam, por muito mais profissionais do que eu que ainda estou a começar, por muito mais determinados do que eu que já me esqueci de mudar o mundo mais uma vez, eu sei que pensar e olhar para a teoria que prova a prática é tão importante como o contrário. e por isso resta essa coisa, imensa, que tudo sustenta. a dedicação. porque é disso que a cozinha, a nova, a velha, a antiga e a moderna vive. daqueles que nos ensinam também isso. que os dias, as aulas, as horas, as coisas para fazer e sempre por fazer são parte desse caminho. a vida faz o resto. e ainda bem...

03/11/14

... doce memória ...


"o efeito da memória é levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam connosco."
p. antónio vieira 

... hoje a aula de pastelaria foi um mundo para mim. inteiro em poucas horas. porque me trouxe uma saudade sem fim. imensa, grande demais para conter no peito. e se desfez numa alegria que coisa nenhuma pode saber como um sabor recordado em ternura. o chefe disse: vamos fazer massa de fartos. sou sincero, nem nunca tinha ouvido tal nome. fartos. gente farta de tudo sim. mas tudo o resto, a massa de tal nome, nunca. até que o mesmo chefe, homem que respeito imensamente pela dedicação e sabedoria, disse: massa choux. e fui atirado para aquela memória. eram o sonhos e os "choux's" como ela dizia. a minha tia silvia. e tudo tinha um segredo como ela dizia. o recipiente de inox, a colher de pau gasta na ponta, o repouso da massa que ela tanto me dizia que tinha que descansar. e os ovos, batidos dois a dois. e depois era o bater a massa. sempre para o mesmo lado. energicamente. mas não era isso. era ver o fogão branco e recordar os cabelos brancos dela também. mais tarde, muito mais tarde. mas era a ternura daquilo tudo. feito uma ou outra vez num ano. os sonhos, todos os natais. os "choux's" eram quando era para uma coisa especial. recheados com um creme de camarão. nunca saberei explicar isto. aquele sabor. aquele imenso sabor único. e de como a vida, tantos anos depois de tudo isto, me levou a estar ali e ver a massa crescer da mesma forma, com o mesmo sabor, sob a orientação das mãos de um mestre que desenhou no prato aquela memória que desconhecia que eu tinha. que chegou na primeira degustação da iguaria feita em jeito de aprendizagens. nunca farei nada parecido com o que a minha tia fez para mim. porque um sabor assim não é um doce, nem uma refeição. é uma dádiva. uma memória que me descreve e faz ser quem sou, como sou. e isso é tudo aquilo que me faz estar a aprender tudo isto. porque sei que nada mais tenho para dar a ninguém que não seja só um simples sabor. nem que seja só isso, gostava de poder oferecer, um dia, como recebi. e soube a vida, mais do que doce. e ainda bem...