12/12/14

... confrontar o mundo ...


"where are we to lay the blame? not on our professors ... it is words that are to blame .... most irresponsible, most un-teachable of all. of course you can catch them and sort them, place them in alphabetical order, in dictionaries. but words do not live in dictionaries, they live in the mind." 
virginia woolf

... é difícil. muito difícil. em dias assim, particularmente. quando as coisas correm mal. porque o cansaço pesa. porque a mudança implica esforço. porque sou confrontado com o lapso. o erro. o não saber. o estar do outro lado. são os testes. é só nisto que digo que preciso puxar pela pouca coragem que sempre tive. puxar pela lógica de perceber que não sei. não saber não é errar. é faltar, saber. e isso é de uma força imensa. transformador, mesmo. quando se erra tudo se torna claro. é preciso reaprender. ou por vezes, é mesmo o cansaço. esta viagem está a desgastar-me para além do que pensava possível. porque deixar o que se ama fazer para fazer outra coisa é difícil. não há outra palavra. difícil. e quando se mistura muito mais do que aprender uma coisa nova mas a isso se junta o confronto com o "outro lado" e com o questionar o saber aprendido então a dificuldade é só mesmo um eufemismo. registo este pensamento. a ele voltarei, quem sabe, no fim disto tudo. porque fiquei a pensar numa coisa. não surgiu de nada. foi só mesmo um pensamento. é disto que falo quando falo em aventura e mudança. em obrigar-me a sair do meu conforto e da minha segurança para tentar algo novo. provoca esta reflexão. este pensamento que nasce de lado nenhum mas que representa quase uma vida a estudar e pensar as coisas do mundo e dos homens. pensei que aquilo que comemos é tão importante como a forma como comemos. parece óbvio. não é. há, na história da cozinha algo que se confunde com a história da humanidade. é que somos acompanhados de um número. fundamental. penso neles vezes sem conta. o quantos somos. agora, cerca de sete mil milhões de outros. mas em tempos, muito menos. somos incapazes de imaginar uma idade média sem luz eléctrica, tanto como somos incapazes de imaginar uma cozinha em versalhes de luís quatorze. ou simplesmente, sermos menos. ser mais fácil fazer chegar produtos simples às pessoas. hoje o dilema é o mesmo em todo o lado. somos muitos. demais, já, talvez. e a cozinha é um produto disso. um espaço de produção. a confecção é uma palavra do século passado. a produção é retomada mas com mais poder do que na era da revolução industrial. somos, produtores. a criação é reservada à elite. que tem tempo. mais do que dinheiro, tempo. acesso. ao tempo das coisas feitas com tempo numa cozinha que cria. e isto é tempo. o dinheiro é o processo para aceder a isto tudo. é aquilo que comemos e como comemos. que nos iguala ou faz diferenciar. começa por aí, arrasta-se a tudo o resto. não sei a razão para este pensamento. sempre pensei muito. sei algumas coisas que me fazem pensar. o saber é sempre a fonte para o processo de criar. de ligar os pontos. de ser capaz de ver para além do óbvio. e em dia em que, testado, fui confrontado com a dúvida sei que nada define ninguém. só o pensamento. o que se pensa. como se pensa. e sigo o caminho. difícil. mas por e para ser feito com alma...

11/12/14

... aprender a saber ...


... engenharia de menus. descobri esta música entre muitas. por empréstimo de um cd. que devolverei com outro. para redescoberta ou simples partilha. e quando terminei de pensar tinham passado quatro horas. circulavam livros. falou-se de filmes. ouvia a lista. teria junto mais alguns. este visto recentemente já com o tempo contado. gosto do actor. e a viagem ao universo disney. porque somos feitos de memórias. e coisas que alguns compreendem e outros não. não é só idade. é vida. vivências. e um som novo que ouvi também me faz lembrar disto tudo. que uma aula centrada nas coisas da cozinha, dos custos, do produtos, da forma como tudo tem que se organizar para ter lógica, para ser sustentável como modernamente se diz, foi muito mais do que isso. porque aprender estas coisas da cozinha passa por formar pessoas antes de formar técnicos. como construir uma carta não é só colocar lá produtos para venda. mesmo que tenham que lá estar. de livro aberto sobre a mesa hoje perdi-me por vários momentos. fui conhecer o país de cocanha retratado por brugel enquanto decorria a conversa. não estava distraído. estava atento. o pensamento fez co-relações de coisas. para além do que estava a ser dito. ouvido. conversado. pensei na "disneyficação" da sociedade de que tanto falei em tempos. e pensei que no que comemos também foi assim. o tempo das coisas felizes. das coisas explicadas. e ao ver uma parte de um filme da disney projectado e do meu rosto, quase instintivamente ter saído um sorriso, pensei nisso. que criar cozinha tem que ter aquela simplicidade mágica que cativa. como qualquer coisa que se faça nesta área. do vulgo. do vulgar, está o mercado cheio. do corrente. palavra que adoro e com a qual adorno tantas vezes a descrição da contemporaneidade. corrente. de fluir. ou de correr. ou de cativeiro. isto porque o desafio de construir um menu de degustação se elevou a desafio de construir algo para além do óbvio. e fechei o tempo de pensar. viajei até à adega de colares. isto porque quanto diziam que era impossível plantar vinha em areia alguém tentou o contrário. e estas coisas é que nos fazem pensar. isto são aulas. melhor, lições. assim, como digo sempre, vale a pena. e afinal eram só números...

... coisas vistas ...


terra imaginária | cockaigne
1567 | pieter bruegel

10/12/14

... sabores e sons ...


... o paladar. o sabor. os sabores. o engano ou a certeza da memória. sou daqueles que defende que mais importante do que a emoção é a memória. eu sei, é contra a corrente. mas é defeito meu. e ao aprender mais umas coisas sobre vinhos e sabores fiquei a pensar nisto. nisto e na música. cozinhar sem música para mim é um suplício. e ao ouvir uma chefe a trautear umas músicas enquanto cozinhava pensei que não era o único. são formas de usar os sentidos. ensinar os sentidos. e acho isto fabuloso. devia ser obrigatório haver música nas cozinhas. enquanto se cozinha. eu não dispensava esta. quarenta e cinco minutos e qualquer coisa nascia certamente. mas acho mesmo que nesta coisa da cozinha a memória é tão ou mais importante do que a emoção. recordamos sempre. nem que seja um local. mas recordamos acima de tudo sabores que nos são comuns. comuns, não de vulgares ou usuais. comuns de estarem presentes seguramente em nós. e isto é curioso porque ao provar um vinho do porto como teste para uma sobremesa reparei pela primeira vez que este vinho também tem uma acidez considerável. ou melhor, a ter em conta. há nisto coisas que nos espantam. enganando o paladar afundam-se as certezas. é por isso que experimentar novos sabores é sempre um ponto de começo do caminho. antigos ou novos, refeitos ou redesenhados, clássicos ou tradicionais. porque se tudo se mudar e no final nada for como a certeza da memória nos pode dar, então teremos sempre a música. e o prazer. cozinhar também é isto. e ainda bem... 

... provar a rudeza ...


... é sempre o tempo. o que ainda tenho. penso nisto. e numa aula que correu depressa. com o tempo a fugir entre ervas aromáticas. conhecidas. desconhecidas. e o levístico que não encontrei em lado nenhum. penso nisto e na inutilidade das horas que já foram vividas em aulas de cozinha que não o são. ou são. porque uma conversa boa, uma aprendizagem feita, como o tempo a fugir pelos dedos e perguntas que saltavam umas depois das outras contrasta brutalmente com o outro lado. a prática. custa ter que responder: não, ainda não sei fazer isso por isso não sei o que aconteceria se em vez de manjerição fosse colocada outra planta aromática. mas volto ao tempo. o tempo que tenho é menos. é contado. preciso. precioso. é o meu. é sempre assim. tal como na cozinha. tudo a seu tempo. tudo com o seu tempo. e o meu é este. só tenho este. só me resta este. se olhei para a brutalidade do acto de cozinhar, transformando esse "bruto" em "belo ou bom", agora sinto a rudeza da coisa. sim, de rude. pela experiência vivida. do "dar de comer". em larga escala. sem a beleza do cuidado. apenas as palavras doces ditas pelas pessoas que cozinharam, às que "vinham para comer", serviam de consolo. é assim que se aprende também. o que se quer. que caminho se quer fazer nisto da cozinha. e percebi que o que sempre disse faz imenso sentido. a vida é sempre feita de pessoas e experiências de que não gostamos. são elas que nos ensinam o que queremos e como queremos ser. e relembro o que ouvi noutro momento enquanto se falava de escolhas para a uma carta. que os detalhes é que mostram o cuidado. e o cuidado faz toda a diferença. porque cozinhar para dar de comer é uma coisa. e cozinhar para cuidar é outra. oiço as palavras na minha cabeça. a beleza é tão importante como a verdade. e na cozinha isso é a pedra de toque que faz a diferença. aprender o que queremos e como queremos ser define aquilo que vamos tentar colocar num prato, numa receita, na forma como a vamos servir. na forma como queremos ser. por antítese, infelizmente, mas aprender também é isto. é negar o que nos cria revolta, desalento ou desânimo. o que é rude. de rudeza. e volto ao tempo. perdido. tanto tempo perdido para a clareza desta ideia. que já tinha em mim. mas que assim, pela força das circunstância se revela ser cristalina. haja tempo, tenha eu tempo para aprender como a fazer. como fazer esta cozinha para cuidar. porque isso sim é o mais importante. porque o tempo, qualquer um, tem sempre um princípio e um fim...

04/12/14

... sabor dos dias ...


"aquele que mais sabe, mais lastima o tempo perdido."
dante, divina comédia

... cada dia que passa agradeço ainda o ter podido viver. mais uma semana. quase no fim. e nela tudo o que faz a vida ser a mais plena das coisas que nos é dada. estive, por instantes, preste a desistir desta viagem. desta aventura. a razão. simples. sentir o desrespeito de quem está para ensinar e apenas se limita a deixar o tempo passar. como se tivesse que ser assim. como se fosse natural que assim fosse. quando é preciso clareza, vontade e rumo. orientação, organização. nada. senti-me perdido. mais do que isso, senti-me desorientado. e senti desrespeito porque quem quer aprender uma coisa nova que é "criar cozinha". e dias depois, agora que tiro cinco minutos para escrever, perceber que aquilo que disse tantas vezes agora vivo-o quase como percurso por fazer. somos feitos de pessoas que passam por nós e de memórias. é com isso que aprendemos. disse isto vezes sem conta. e numa mesa, num almoço cruzado com o tempo que nos fugia dos dedos a todos, atravessámos todos as vidas uns dos outros. a mesa e o repasto eram só desculpa. porque ensinar é isto que sempre defendi e fiz. cruzar as palavras, com os sabores, com a memória, com a dádiva de confiar. soube bem. o sabor e o saber. as palavras. e se em aula se falava de tudo o que agora guardo em mim como aprendizagem, é no que se dá que se conserva a memória dos dias que valem a pena. nem que seja pelas horas. ou só por se falar de cozinha. ou da vida. e nisto somos mais pessoas. gente que passa e fica. ligada. oiço uma música de que falei. penso nas coisas faladas. nos ecos. nas sobras das palavras sem sombra. limpas. guardo-as. aprendi com elas. fiz isto muitas vezes eu também, como alguém. muitos "alguéns" que foram meus alunos. agora é ao contrário. e percebo que estes sabores são imensos. e volto à sala de aula. a uma ficha. criada para que o que se come seja sempre igual. constante. ou melhor, seja possível ser criado por alguém e feito por outro alguém da mesma forma. constante. penso nisto. sempre defendi isso num tempo em que as pessoas são os projectos. ou neste caso, as pessoas são as receitas. dar o que se cria, dar a informação. dizer como se faz é algo que assusta ou é muitas vezes contrário à natureza humana. é curioso isto. porque sei que quem cria, cria sempre. quem faz, só faz. é também da natureza humana que assim seja. ou não. mas não importa. importa o tempo. útil. e a mesa, a conversa, o tempo válido que me manteve no caminho. e nem sabe o bem que me fez. aquele tempo. aquelas vozes. aquelas palavras, a realidade de tudo aquilo. manteve-me. sem saber ninguém que isto era assim. manteve-me. susteve-me. alimentou-me. para continuar... 


02/12/14

... provar o respeito ...


... eu sou daquelas pessoas que perdeu a alegria. é simples. é a vida a passar por cima de nós. nada mais. isso vê-se. mas há no "criar" na cozinha coisas impossíveis algo que me fascina. e o fascínio é o que temos de mais perto de contacto com os deuses. nem que seja por breves segundos. e nestes últimos dias de caminhada nesta aventura percebi uma coisa que ainda não tinha percebido. que o tempo (ou será a idade?) me deu um imenso respeito pelos ingredientes. as coisas simples de que são feitos os pratos criados. e pelo acto de os confeccionar em si mesmos. pode ser a mais simples das coisas ou a mais complexa. mas penso (deve ser do complexo de formação cristã) na fome. no imenso respeito que é preciso ter por eu poder ter aquilo ali para criar algo diferente. e penso na fome. no não ter. e não gosto de ver uma cozinha cheia de gente sem lógica ou ordem. a fazer qualquer coisa porque é preciso fazer. há uma ordem que é respeito. o saber o que se deve fazer com cada uma daquelas coisas que temos nas mãos é mais do que aprender. é ter respeito. profundo. porque estão ali coisas que faltam em tantos lugares. e porque até a mim, a nós, pode ser negada em determinado momento da vida. é por isso que tenho sempre em mente o privilégio que é poder fazer isto. estar ali. ver tudo aquilo, fazer tudo aquilo. o respeito. profundo. que tenho que ter. porque já me faltou um dia. porque poderá faltar novamente. porque falta a muita gente que ali não está. deve ser da idade ou do cansaço. mas hoje deu-me para pensar nisto...

... laranjas à antiga ...

... quando eu era miúdo era este o sabor que me prendia nas "festas de aniversário". não sei se era o sabor se a forma. a textura, diferente. era qualquer coisa. o sabor, em si, nada tem de diferente em si mesmo. é tudo de uma simplicidade brilhante. porque é óbvio. porque é claro. limpo. simples. e a surpresa acho que está nisso. naquela acidez inicial que se desfaz na boca. ou só a brincadeira de uma coisa não ser como sempre a provámos. é tão curioso isto. de tão antigo para mim não tinha nada de inovador. mas afinal era. isso sim, surpreendente. é como o poema. a que volto tantas vezes. que anda sempre na minha cabeça. como uma presença que nunca me deixa. como a força das palavras que conserva de forma tão simples mas tão intensa. como o sabor, agreste mas bravo que explode na boca. como o poema. na sua força... 

"minha laranja amarga e doce
meu poema feito de gomos de saudade 
minha pena pesada e leve 
secreta e pura 
minha passagem para o breve 
breve instante da loucura 
minha ousadia, meu galope, minha rédia, 
meu potro doido, minha chama, 
minha réstia de luz intensa, de voz aberta 
minha denúncia do que pensa
do que sente a gente certa..."
ary dos santos, cavalo à solta


laranja antiga
20 minutos
+ 12 horas (solidificação)
ingredientes
4 laranjas doces
4 folhas de gelatina
100 gramas de açúcar

receita: esprema as laranjas. leve o sumo ao lume até ferver. junte o açúcar. mexa até dissolver. junte as folhas de gelatina. reduza o lume e mexa até dissolver. verta o preparado nas metades da laranja e leve ao frio até solidificarem.
dica: sirva com chantilly com aroma de baunilha. 

... nunca soube se gostava deste sabor ou não. é das memórias que ele me traz que gosto. imensamente. porque os sabores são assim. só memória. muito mais do que emoção. e quando vejo a cozinha feita espectáculo penso nisso. na memória. e não na emoção. há na modernidade algo que não gosto. é o imediato. o ser, cada um de nós, alimentado pela procura do espanto imediato. sou um velho do restelo. gosto muito mais da ideia da memória. de criar essa reserva única que nos faz voltar ao que um dia ficou preso em nós, quase como fazendo parte inteira de nós. e é disso que a cozinha deve ser feita. de memória. penso eu...