26/03/15

... cozinha: lugar de vida ...


"...mas só há um mundo. a felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. são inseparáveis. o erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. “acho que tudo está bem”, diz Édipo e essa frase é sagrada. ressoa no universo altivo e limitado do homem. ensina que nem tudo está perdido, que nem tudo foi esgotado. expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores inúteis..."
camus

... e depois, de sentir a vontade de parar toda a aventura, chega a cozinha. quem ensina mostra mestria. envolve tudo com histórias. acredita e confia. nada há de mais motivador do que sentir confiança. que alguém espera de nós aquilo que podemos ser capazes de fazer. o hábito faz o monge. os processos ganham forma de rotina. começa a entrar tudo no corpo e nos gestos. sabemos e planeamos. pensamos em conjunto, em grupo, antes de fazer o que quer que seja. depois é deixar as mãos fazerem. recordamos a memória. e quando nos dão uma receita, é a identidade que procuramos. criar algo que fique. só isto. fique um pouco mais do que tudo aquilo que corre e passa no tempo que se consome cada vez mais em instantes. ouvimos o chefe dar os parabéns. dizer que as coisas correram bem, com erros como é humanamente natural para quem aprende esta coisa da cozinha, mas que foi tudo entrando no seu caminho. volto à identidade. "são vocês a cozinhar hoje?" é como um reconhecimento. não é preciso mais. é também, o esperar constante pelo sabor certo. o cansaço transforma-se em hábito. é muito grande, mas ali, quando quem ensina confia, transforma-se em vontade. mesmo que o dia tenha mais hora do que o corpo merece. desconfia-se da receita da pizza mas afinal era errado desconfiar. acertam-se temperos. vai-se rindo pelo meio. passa a haver tempo para fazer as coisas bem porque os procedimentos simples já estão no sangue, na vida em cada um de nós que em grupo, cozinha para servir bem. bom. e bem. trocam-se ideias. de igual para igual. ouve-se. diz-se. no fim faz-se o balanço. é raro na vida tudo isto se resumir a poucas horas. é que a cozinha é um lugar de vida inesperadamente rápido. pensar, fazer, repensar, refazer, melhorar, e voltar a pensar. tudo num dia. ou várias vezes num dia. regresso, no fim deste tempo à identidade. e penso mesmo que a cultura é um bem essencial para quem quer ser e fazer diferente em cozinha. lobo antunes, o escritor, dizia que é tão saber fazer bons pastéis de bacalhau como ter lido os lusíadas. eu diria que para sentir plenamente aquilo que se faz na cozinha é preciso ter a identidade dos sabores originais na ponta da língua. um pastel de feijão é de uma certa forma. o melhor que comi. ou o tradicional, de torres vedras comido num fim de tarde de outono. saber o sabor das coisas. e quando a cozinha é a tradicional portuguesa isso tem um peso ainda maior. é a cultura, estúpido. seja lá o que isso for. o que importa, agora, é o que fazer com isto. com este caminho já feito e com isto que somos já na cozinha. do que já sei. o que já aprendi. o que fazer com isto? talvez só guardar. por enquanto. guardar e esperar o que virá depois de uma pausa breve. as forças, essas regressam enquanto o corpo não desistir. o resto? são só sabores, amizades, dedicação, brio e vontade. é por isso que a cozinha é um lugar, imenso, de vida...

23/03/15

... a realidade e as coisas ...


... o mundo gira. a cozinha é um bom refúgio. um lugar onde se pode estar, sem ser preciso falar. às vezes nem é preciso falar. gosto disso. e quando se embarca numa aventura como esta, sabemos que um dia haveria de chegar um dia assim. apeteceu-me, verdadeiramente, desistir. as forças são poucas. não é cansaço. são mesmo as forças. e perceber que, por mais que tentemos, as pessoas serão sempre pessoas. e o cansaço de lidar com tantas e em tantos momentos, surge imenso, vasto, pesado, quando do nada olhamos e vemos o cansaço de alguém que nos quer ensinar, ouvimos a história de um concurso construído em função de vencedores antes do tempo ou simplesmente quando sabemos que estamos a perceber tudo um pouco cedo demais. quem se aventurar nesta coisa de aprender cozinha tendo uma vida já vivida noutras áreas, encontrará dias assim. mas depois há o "olhar em volta" e ver miúdos com brio profissional como nunca vi em gente respeitável com "carreiras". uma conversa improvável com um colega que admiramos na arte de desenhar e pintar sobre pintores e arte. há, ainda, quem lute contra o cansaço ou a tristeza. há a conversa sobre sabores ou uma revista comentada com iguarias de onde se retiram ideias para um futuro prato. há dias assim. este foi talvez o primeiro em que me senti capaz de deixar esta aventura ficar por aqui. mas a vida, aquilo de que são feitas as coisas e os sabores, a realidade e a forma de encarar o futuro, nunca me deixariam fazer tal coisa. a vida leva-nos sempre onde nos esperam. se me trouxe até aqui é porque algo me espera. nem que seja o tempo, em que, estando na nobre e bela arte de cozinhar tudo o resto desaparece. até dias como este...

22/03/15

... do tempo na cozinha ...


«...the vibrations on the air are the breath of god speaking to man's soul. Music is the language of god. we musicians are as close to god as man can be. we hear his voice, we read his lips, we give birth to the children of god, who sing his praise. that's what musicians are...»
copying beethoven, movie

... estava a aguardar o arroz secar e pensava. o tempo. aqui, tudo é uma questão de tempo. nele reside a imperfeição de tudo. quase tudo. o resto vem das mãos. e do cuidado. é necessário uma abstracção total do mundo para gerir as imperfeições na cozinha. e a cozinha é mesmo o reino das coisas imperfeitas. a conjugação, qual partitura, é mesmo essa escrita com tempo das coisas que se podem combinar para fazer algo saboroso. num espaço e num mundo onde o tempo das coisas é sempre acelerado, a cozinha não consegue fugir a isso. deveria. tudo são máquinas para arrefecer mais depressa. cozinhar mais rápido. fazer "parecer" que até foi feito à mão. as mãos precisam de tempo. de tempo para fazer e tempo para descansar. a máquina é feita para o contínuo processo de fazer. fazer sempre. estava a pensar nisto porque foi confrontado com a cozinha oriental. sabores e técnicas. e percebo a lógica cultural mais do que o que dela fazemos para parecer que sabemos, aqui, neste canto do mundo, imitar o que lá é feito ancestralmente. é que o segredo é mesmo esse. ser ancestral. como a doçaria conventual, por cá. curiosamente foi nesta semana o reino desta questão que se cruzou nesse espaço que é a cozinha e a pastelaria. olhava eu para o forno e via que o processo acelerado das coisas feitas para estarem prontas desvirtuava o virtuosismo daquelas que tiveram tempo para repousar. adoro esta expressão. deixar as massas repousar. descansar. como se fosse preciso o mundo girar mais um pouco para o sabor aparecer. saber esperar é, na cozinha, a maior das virtudes. para os comensais, essa espera, pode ser o maior dos prazeres. aquele descanso que traz algo de novo. contra a pressa de um mundo cada vez mais rápido. curioso, isto. olhar e ver a importância do tempo, que passa, que passou, que fica para ser espaço de criação, na cozinha. é talvez esse, parte do segredo que agora começo a entender... 

17/03/15

... silêncio na cozinha ...


... "nós, ali, brincamos aos deuses.". e pensei na frase da peça de teatro antiga de genet. os deuses não possuem sombra. faz pensar isto de brincar aos deuses. na cozinha. mas é um pouco isso. e depois, quando inteligentemente, quem nos ensina dá liberdade para aprender, então conjugam-se os factores perfeitos para fazer desaparecer o medo e fazer aparecer o sabor. somos feito de memórias. não somos o que comemos. esta frase deu o mote. mas os deuses não comem. nós, comemos. no entanto, a expressão é sempre do manjar dos deuses. e trocamos tudo porque só queremos aquele momento. estar, um dia, depois de tantos longe desse lugar onde percebi que a cozinha era um mundo, no lugar onde se fazem as coisas doces é perceber a magia desse espanto. é aquele momento em que conjugamos coisas que são memórias nossas. nozes. laranja. canela. uma calda de açúcar. perceber que nem sempre as coisas são simples. perdido o medo, tudo é possível. quase visitar o olimpo. por instantes. é aquele instante da prova. em que o cérebro revela a sua única imperfeição. que estudei. incapaz de controlar o espanto o cérebro produz silêncio. fica-se e pede-se silêncio. para os sabores aflorarem ao corpo em forma de memórias. é mesmo um momento em que tudo se suspende. é prazer. deturpamos a palavra mas é mesmo isso. prazer. e a cozinha tem desta coisas. como muito poucos outros ambientes é aqui que podemos conjugar coisas imperfeitas. sob o nosso olhar, perceber que a + b não é sempre c. é este silêncio que procura quem cozinha. porque ele diz tudo. até o obrigado que não era preciso. ou os parabéns pela criação que foi só uma coisa efémera demais para algum dia ser recordada. ou a amizade de partilha entre quem criou. tudo se reflecte naquele silêncio. talvez seja ele, na sua imensidão, a verdadeira linguagem dos deuses...

12/03/15

... espaço saboroso ...


..."a diferença entre solução e direcção é esta: a solução é sempre um remédio passageiro para disfarçar a desgraça. ao passo que a direcção é a própria dignidade posta nas mãos do desgraçado para que deixe de o ser, e a direcção única é a garantia perpétua dessa dignidade."
almada negreiros

... dou por mim a pensar em sobrevivência. e no tempo. e na sociedade que hoje temos. e no quanto me espantam as pessoas e no quanto, cada vez mais sou um ermita neste tempo e neste espaço, procurando o silêncio sobre todas as outras coisas. dou por mim a pensar que sei agora que, como em qualquer outra arte, dominar as coisas simples é fundamental para fazer "boa" cozinha. e tudo com coisas muitos simples. água, açúcar, farinha, manteiga, ovos. e tudo se pode fazer. fazer bem. como diz um colega, para fazer bem só é preciso querer fazer bem. a frase contém uma verdade fundamental em cozinha. o querer. às vezes esquecemos isto. podemos somar anos e anos de experiência. ajuda muito e vejo isso em cada chefe que acompanha cada passo de cada confecção. mas sei também que há um querer. um espaço de vontade que é o ingrediente que tudo transforma. porque realmente, percebendo que estas coisas simples, básicas [de basilares] são o fundamento de tudo o resto que podemos criar, sabemos também que há esse elemento único que tudo diferencia. a dignidade de um prato está na forma como o fazemos. como se fosse para nós. ou para alguém que temos em consideração. para alguém que queremos acolher bem. mesmo que depois, não o seja. a dedicação é uma palavra em desuso. mas é mesmo e a única que faz sentido aqui. aprendi isso entre outras coisas. do primeiro ao último prato, do maior ao mais pequeno detalhe, tudo importa. tudo faz diferença. na pastelaria, ainda mais. porque o fim de uma refeição pode ser o que fica como pedra de toque para tudo o resto. aprender isto é perceber que cozinhar é acolher. e dar, a quem provar o que fazemos, um pouco de nós. nem que seja só pelo remate de alguém que nem sabemos quem é, mas que diz: está bem feito. está bom. fazer bem é, em verdade, só querer. e a dedicação faz a boa e má cozinha. disso não tenho dúvida...

11/03/15

... cozinhar é ter alma ...


..."o imaginário é como um museu de imagens, sejam elas passadas, possíveis, já realizadas ou a realizar e pode manifestar-se em todas as ocasiões, seja nos sonhos, nos delírios, nas visões ou mesmo nas alucinações. o homem não pode viver sem imaginário, sem o prazer do imaginário porque ele é, antes de tudo, um antídoto do medo, principalmente do medo da morte porque, felizmente ou infelizmente, o homem é o único animal a ter consciência dela."
alfredo saramago

... quem se aventurar no caminho da cozinha, saiba que o caminho não é fácil. é, mesmo, algo difícil. e estava a pensar nisso agora. solitário pensamento de quem só tem a si mesmo para conversar sobre estas coisas. quem verdadeiramente queira entrar na cozinha e deixar que a cozinha tome conta de si, faça parte de si, saiba que a travessia do mar é dura. imensa. às vezes, tem a forma de adamastor. mas há depois uma recompensa para quem, verdadeiramente, abraçar a correria, os sabores, os cheiros, o constante afazer e o constante cansaço. há o lugar do imaginário que renasce em cada dia. em cada trabalho feito. em cada prato. ouvi uma chefe dizer algo que trago comigo: "vê, a cozinha portuguesa é tão boa que não precisa de grande "empratamento". as coisas são simples e boas por si." é uma tal de coisa chamada essência. que vem da identidade. e que em alguns pontos se liga com o nosso imaginário pessoal. tem sido uma imensa descoberta. dois chefes que estão a fazer um trabalho fabuloso de nos ensinar a amar a arte de cozinhar. a trazer gosto e sabor. a levar este imaginário ao lugar onde deve estar. e depois, ao aprender, dizemos: mas afinal é tão simples. é nessa beleza da simplicidade que se esconde tudo. e se revela tudo. penso nisto, quando sei o quanto me tem custado esta aventura. há uma parte em mim que se calou. não diz mais: o que é que estás aqui a fazer. mas quando se deixa a arte de cozinhar entrar na pele sabemos que não seremos os mesmos quando este caminho acabar. não sabemos como seremos. porque não seremos os mesmos. eu não serei o mesmo. e dante, o da divina comédia, tinha uma expressão de encruzilhada que definia tudo. perdido no meio da vida dei por mim sentado numa pedra. diria eu. e encontrar-me na e pela cozinha, como hoje se dizia em conversa que nos fez pensar um pouco num silêncio que devorou o espaço, faz pensar. faz mesmo pensar. há uma magia, uma imensidão de coisas, nesta coisa única que é cozinhar. este é só o pensamento triste de um homem só, diria antónio nobre, o poeta. eu diria o mesmo. e nem sei porquê. quem se aventurar no caminho da nobre arte de cozinhar, saiba que tem que levar o seu lado mais humano. ouvir dizer que as costas vão doendo. que os dias vão passando. que as horas, às dez, doze ou mais de cada vez, vão passando depressa demais, às vezes, para serem vividas. mas que no fim do dia, quando ninguém ouve e ninguém vê e só o seu próprio pensamento ecoa saberá que o lugar perdido é encontrado num sabor que fica como imaginário vivido, presente e futuro...

10/03/15

... estar na cozinha ...


... estava bom. é bom trabalhar com vocês. no meio da correria de um momento, foi bom ouvir isto. é talvez esta uma das razões porque se faz cozinha. pelo orgulho quando o trabalho é bem feito. este lado, disto tudo, tem algo de imenso. foi um bom dia, diz-se, no fim. o dever, cumprido. e bem. e isso é bom. depois vem o pensamento. a avaliação. podia ter-se feito de outra maneira. ou podia isto ter levado mais isto ou aquilo. mas primeiro está esse dever. e esta palavra é muito importante. cozinhar é um dever. para com os outros. para os outros. sabemos isso quando alguém diz: é para cento e setenta e três pessoas. podia ser para uma só. é um dever. o trabalho em conjunto transforma este dever em objectivo. algo para ser feito. e cada um toma já, naturalmente, o seu lugar. começa-se por fazer tudo o que é preciso. depois, o resto. há sempre tempo para tudo. antecipar e preparar é sempre melhor, mas nem sempre possível. compensa-se tudo com organização. passo a passo. e tudo se vai resolvendo. isto já está. isto também. quem está a fazer isto ou aquilo. falta isto e falta aquilo. e vai-se fazendo tudo. com tempo. até para ouvir uma história de um chefe que nos faz sorrir. ou para trocar umas ideias. tirar umas dúvidas. é como se tudo agora fosse mais fácil. fluído. natural. deve ser do tempo que passou. ou então é mesmo a cozinha que vai entrando, desta forma, aos poucos pela pele dentro. pelos gestos. pela confiança. eu sou capaz. nós, somos capazes. seja de cozinhar para quarenta, seja para quatrocentos. e no final do dia, basta isso. alguém dizer: estava bom. muito bom. e o sentido, o sentimento, o valor do dever, do tal objectivo, estar levado a bom porto faz com que se sinta mesmo isso. foi um dia bom. o dia, esse ficou fora as portas. fora da cozinha. mas esse, é outro dia. não aquele. aquele é sem tempo. só sabores e desafios. e ainda bem que assim é...

07/03/15

... bom gosto na cozinha ...


... bom gosto. educar o gosto. o sabor. achei muito importante o chamar de atenção. num tempo de "tendências" chamar os bois pelos nomes é mais do que relevante. é determinante. a verdade é que o gosto pode ser educado. tal como o sabor. depois podemos gostar de umas coisas e de outras não. mas há algo que antecede isto tudo. chamo-lhe, à falta de melhor, a busca. a procura. tive a sorte de ter quem fizesse esse trabalho por mim, quando era miúdo. e de eu procurar o que faltou. tive sempre, familiarmente, uma cozinha com requinte. com sabores nobres e ricos. procurei, depois, por mim o resto. o sabor ganha forma quando mais rico for o desafio que nos colocamos enquanto pessoas de procurar novos aromas, novas texturas, novos paladares. o meu avô era um homem sábio no que dizia respeito à arte de bem comer. levava-me sempre com ele. dizia: prova. mesmo que não gostes, prova. aprendi com ele esse desafio de descobrir sempre mais. e depois, a construir referências. lugares seguros na arte de degustar qualquer iguaria. o arroz de marisco (que ainda hoje não é prato da minha eleição) tenho como certo que o melhor que comi foi com ele. os ninhos, da minha mãe nos anos dele. ou a sopa doce. o tornedó, no tavares. ou o bife, na trindade, que ainda hoje acho que é o melhor bife que se pode comer. e o melhor carapau grelhado que comi foi também com ele, em sesimbra. ou, já sozinho, o melhor rancho que comi foi numa viagem estranha até santa comba dão, vindo num tacho para mesa, numa tasca que nem sei se ainda existe nem se lá conseguiria voltar. referências. quando tento fazer qualquer coisa destas é ali, ao momento e ao sabor que tenho em mim como perfeito, que volto. há uma coisa que é certa: não podemos iludir ou falsear um sabor. porque a memória, a nossa, é a mais forte das coisas que nos revela o segredo do que comemos. sabemos quando algo é memorável. quando algo nos enche a alma para além de ser só um bom repasto. é o gosto. tão importante, mas tão importante é pensar e saber isto para quem cria coisas na cozinha para serem memórias para os outros. das coisas que me deixam, ainda, triste é não ter encontrado essa receita, esse prato, essa iguaria, que confeccionada por mim, deixe essa memória que todos alguma vez citámos de alguém: nunca comi nada igual ao que o/a fazia... 

06/03/15

... das equipas ...


... somos todos diferentes. parece óbvio. não é. porque há algo na cozinha que nos une. é o dever. o trabalho. o brio. o orgulho. é já isso que, a somar ao desejo de aprender e fazer melhor, nos leva a todos no caminho que temos feito. somos diferentes. em idades, em saberes. em formas de fazer as coisas. no que desejamos para o futuro. nunca gostei do discurso de "somos uma equipa". nem coisas que tais. somos pessoas com um objectivo comum. aprender. e por acaso, até nos damos bem quando chega a hora de criar e fazer da cozinha o nosso espaço. é fabuloso olhar para trás e ver que há quatro meses ou menos a maioria de nós nunca se tinha visto na vida. a cozinha teve o condão de nos unir. teremos, no futuro, caminhos diferentes. isso sabemos. sabemos também que há dias em que as coisas levam a um elevar da voz ou a discordâncias normais de quem passa tanto tempo entre quatro paredes, tachos e desafios constantes. mas o que sei, é que a cozinha é feita de pessoas. com as pessoas. para as pessoas. e não podia querer outras para partilhar esta aventura do que este grupo de gente que gosta, verdadeiramente, de cozinhar. é tão bom quando assim é. e que seja assim, ainda mais algum tempo...

05/03/15

... experiência na cozinha ...


... estive uns minutos a olhar para a experiências das mãos que temperavam chocolate. parecia simples. é sempre assim. depois há que pensar: são anos e anos. é a experiência. a que falta a estas mãos. às minhas. gosto imenso de ter dois chefes que são mestres nesta coisa do fazer. e quando falamos de doçaria conventual falamos de algo mais importante do que um doce. falamos de história e de cultura portuguesa. voltei a pensar nas mãos. já tinha visto um dos chefes a fazer fios de ovos. voltei a ver. tive a certeza que é o rito, o ritual, o gesto repetido vezes sem conta que dá o sabor. que tem o saber inscrito. estar na cozinha é para mim um exercício de organização, cooperação e trabalho. dedicação. disso já não tenho a mínima dúvida. e quem vier para a cozinha com laivos de egoísmo ou complexos de estrela tenderá a perceber que, para muito (se não for para quase tudo) depende sempre de algo externo a si. que seja o outro. ou só o espaço. mas a humildade perante os produtos, a experiência e o saber fazer é fundamental para abrir as mãos aos gestos que são preciso aprender. depois não ter ideia que se sabe fazer o que quer que seja porque na primeira vez que se repetiu o "aprendido" até saiu bem. é preciso refazer tudo dezenas ou centenas de vezes. ganhar esse "calo" que o erro dá e a certeza alimenta. depois, sim, encontrar algo de novo. mas sem dominar a técnica e construir a experiência tudo é só um castelo de areia. a cozinha é o lugar da maior das incertezas do mundo. tudo muda a uma velocidade brutal. olhei para os chefes e pensei nisso. sei que talvez não faça disto mais do que esta imensa aventura que está a ser. mas sei também que levo deles, dos colegas e do tempo vivido, lições que as mãos não vão esquecer. nunca...

04/03/15

... simples sabores ...


... saber não aprendido. recordei, o verso, do fado. deste fado. ao aprender a fazer a base de uma caldeirada. e tomei consciência da imensidão do que tenho para aprender com dois chefes que são diferentes mas que se complementam em respeito e dedicação. o saber não aprendido tem um sabor especial. gosto imenso dos reparos à criatividade quando falamos de receitas tradicionais. não há que inventar no que é, de si mesmo, perfeito. e há um saber e um sabor no que se cozinha há anos e anos de uma certa forma, com o saber das mãos e da prova, da cor que fica bem de certa maneira de nenhuma outra que mais nada tem. e depois, o detalhe. nas coisas. primeiro isto, depois aquilo. que não é o mesmo do que primeiro aquilo e depois isto. não é mesmo. na cozinha, nesta, feita de truques e experiência, tudo tem o seu lugar. nós, amadores em coisa amada, temos que saber respeitar isso. é mais antigo do que nós. é um saber, no verdadeiro sentido do termo. e depois, o outro lado. das coisas com sabores novos. e formas novas. e decorações. e espanto para o olhar. acho que nenhum aprendiz, naquela cozinha, tem ainda a consciência do tanto que tem a ganhar quando a mestria do acto de ensinar é feito por duas pessoas que tanto possuem de seu para dar. de formas diferentes. com saberes, desses, aprendidos e não aprendidos. mas imensos. que nos querem passar. para as mãos, para os gestos, para o olhar e o sabor. o que temos para criar. agora. no futuro. regresso ao fado. hoje foi a música que andou na minha cabeça. enquanto via nascer cada prato. e pensava cada coisa. recebi da minha mãe tudo o que sei. pode parecer estranho, mas foi. até os sabores. e estes, tradicionais e bons, provados e criados hoje, são feitos dessa memória de certeza. e um obrigado. por me ter ensinado tanto, mesmo sem o fazer como aqueles que agora me ensinam. a cozinha tem destas coisas. não são só sabores que alimentam. são recordações que se revivem...

03/03/15

... quanto cozinhar é um risco ...


... não se fazem as coisas assim. foi, talvez, o dia mais difícil que passei na cozinha até agora. difícil e desencantado. aprendi imenso. foi também, talvez o dia em que aprendi mais. no meio de tudo. entre tudo. e vi os outros. percebi os outros perante a diferença. foi-me apresentado um rapaz. dezoito anos. portador de deficiência mental. creio. tipo sindrome de down. pareceu-me. era preciso fazer o "acolhimento". não foi isso. não foi acolhimento. disse logo que sim. que ficaria a orientar a integração. dele, nada soube. só o sorriso. foi vestir-se. ajudei. comecei a perceber as limitações por estar atrapalhado com botões. muitos que uma jaleca vai tendo, mesmo no modelo mais simples. depois é toda a lógica de organização de um espaço que não é pensado para quem tem algumas limitações motoras que acompanham as mentais. escadas altas demais. espaços de circulação limitados. e a cozinha. pensei no que senti quando entrei ali pela primeira vez. era tudo agressivo. metálico. barulhento. percebi, nos olhos dele, que assim também era. muito mais quando tudo ganha uma velocidade maior do que imaginamos todos. olhei para ele. passei o dia com ele. tudo passou pela minha cabeça. estive sempre atento. fiz pausas. soube da namorada que dizia ter. senti que estava a ficar cansado. já não sabia o que fazer com ele, por ele. vim passear para a horta de flores e ervas aromáticas. vi que apanhou um flor para dar à tal namorada cujo nome não cessava de me dizer. ele fez-me olhar para a cozinha de outra forma. conseguiu tirar as folhas de várias alfaces. de tentar fazer um leite-creme. tentei que ele fosse seguindo tudo mesmo quando a ajuda era todo o trabalho que fazia com dedicação. fui buscar o que sabia. o que sei. a ciência ajudou-me. terminei exausto. pelas emoções. pelo dia. pelo que aprendi. aprendi que precisamos de estar preparados para acolher quem, com limitações, procura aprender na cozinha. que temos que ter um profundo respeito por isso. que as coisas não se fazem assim, nunca. mesmo que com isso tenha eu, aprendido tanto. a cozinha é um lugar mágico. mas é preciso saber encontrar a magia. e saber orientar quem dela precisa. talvez para a próxima seja assim. porque o pior que pode existir no dia de alguém que está na cozinha é não saber como fazer as coisas para acolher quem precisa de descobrir o óbvio para além do simples que elas podem revelar...

02/03/15

... refazer o paladar ...


... a cenoura é doce. pode ser outra coisa. mas há algo que não muda por mais que tentemos. é a nossa memória ancestral. qualquer coisa de instintivo. o paladar tem esse segredo guardado. essa descodificação. o que fomos perdendo foi mesmo o saber básico de um sabor. e não estou a falar das cenouras compradas numa qualquer hiper-superfície comercial. estou a falar de uma, plantada num pedaço de terra e deixada a crescer com o que a terra dá e o cuidado do homem permite. e depois, saboreada. estranhamos o seu sabor. a naturalidade do mesmo. vamos buscar conceitos definidores da coisa: gourmet. ou coisa parecida. biológica. para parecer mais limpa ainda. é curioso isto. quanto mais nos aproximamos do natural mais achamos, agora, que as coisas vão tendo aromas e sabores sofisticados. procuramos "harmonias" e algo como isso. o que o paladar não esquece é mesmo o que sabe ser verdadeiramente saboroso. o segredo está em apurar isso. pensei nisto ao olhar para um livro de cozinha com quase mil e quinhentos anos. e que continha uma frase deliciosa: "o sabor é como um rio. passa e um dia volta em forma de chuva." é mesmo isto. não há melhor forma de o dizer. cresci num ambiente familiar onde a cerimónia e a educação à mesa (e em todas as circunstâncias) determinava tudo. mantenho, por acreditar que isso é bom, essa forma de vida no meu dia a dia. acompanho isso com esta memória. com este paladar feito de sabores genuínos. ancestrais. o que se come, comeu e como se come e se comeu determinam em muito a nossa memória para a criação de uma iguaria. é fabuloso ver e sentir como as coisas se juntam. a cozinha é sempre um lugar de espanto. nem que seja só por isto...

01/03/15

... tanta coisa na cozinha ...


... foi um regresso intenso. novos "chef's". novos desafios. da mais improvável das pessoas, a frase que ficou presa na memória destes dias: "daqui a dois semestres passam de alunos a nossos colegas. já pensaram nisso?". não é bem assim, mas muda a perspectiva das coisas. indica o caminho do respeito. e do que é preciso fazer. apostar nessa relação e no fazer. fazer sempre bem. aprender, sempre mais. motiva, determina. ensina. ensinar é o mais nobre os actos. é esperar a superação. do outro. que seja melhor do que quem ensina. na cozinha isso tem um peso fundamental. mudam as regras e ainda bem. todos terão que trabalhar com todos. muda tudo. perdem-se hábitos. ganham-se partilhas. a vida fora daquele espaço confinado à ajuda entre colegas é assim. mais bruta. em constante mudança. isso é preparar para a vida. e depois, depois deste confronto com o desafio de recomeçar, o aprender com a sabedoria de um chefe que tem tudo para ser das pessoas que mais gostei de conhecer neste caminho. num momento de dimensão maior, a serenidade, a sabedoria, a experiência e a calma, junto com a confiança depositada faz sentir que um mestre é sempre aquele que dá tudo o que tem a quem o olha e escuta para aprender. isto, acompanhado de um colega/amigo a quem, em tudo respeitamos e sem muitas coisas sabemos que podemos confiar e com um ambiente de trabalho/aprendizagem fantástico fizeram da experiência de falar com o público em grande massa uma das coisa que guardarei como fantásticas neste percurso de aventura. é, para quem cozinha, tão importante o acto de cozinhar, como o acto de escutar e saber o que é "sentido" e "vivido" por quem degusta aquilo que é feito pelas mãos que criam qualquer coisa no desejo de surpreender e satisfazer. importante porque é o sentido último, único e fundamental do trabalho feito, muitas vezes, em isolamento ou entre iguais. foi, uma semana, imensa. que terminou com chocolate. do verdadeiro. amêndoas. das "verdadeiras" e das "imemoriais". as coisas, que surgem do tempo contínuo neste espaço de tempo que temos para cá andar, surgem com um sabor ancestral que não tem igual. e estamos a perder isso. guardar tudo isto é uma obrigação de quem quer cozinhar a sério. se é bom inovar, melhor é conservar o que faz parte da memória de uma identidade culinária. a essência das coisas. talvez seja defeito. mas é nessa essência que quero que esteja a minha marca quando cozinho...