29/05/15

... às vezes, ao cozinhar ...


«...depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
olha-se para dentro e já pouco sobeja
pede-se o descanso, por curto que seja
apagam-se dúvidas num mar de cerveja
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar, sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida...»
sérgio godinho

... às vezes, sei que aprendi tarde a sobreviver. a viver, ainda não aprendi e penso que morrerei sem o saber fazer. às vezes, penso, ainda bem. ainda bem que não aprendi. a vida encarregou-se de me dar uma infância e juventude revestida de privilégios. não dos das riquezas dos deuses. dos simples. dos que fazem e definem a alma. o resto, quando cresci, aprendi a brusquidão. a dureza. a vida torna-se amarga porque é vida. porque é preciso ficar gravada na pele. tem que passar por nós, a certa altura. ouvi hoje chamar a isto, mundo. eu chamo-lhe mesmo vida. o bom e o mau. gravado. em nós. e quando chegamos a um tempo, nesta aventura, em que tudo o que fomos aprendendo é testado, isso revela-se. já uma vez o escrevi, aqui. o mundo é dos espertos. a cozinha é de quem sabe cozinhar. não há cábulas na cozinha que ensinem e coloquem num prato o saber de uma vida. nem o aprendido. nem o desejo de fazer o melhor que se sabe e pode. não há truques nem etapas que se possam queimar. ali, perante o desafio de criar algo, há só mesmo tudo o que se sabe e se é. e o que se deseja criar. e a dedicação que se coloca em cada prato. é curioso ver o caminho feito. individual e colectivo. que há quem tenha o brilho no olhar. e ainda bem. é dessas pessoas que a cozinha portuguesa precisa. as mesmas que, num fim de tarde, surgem do nada para ensinar como se faz cozinha japonesa a convite de uma das poucas pessoas que se importou verdadeiramente com quem está a fazer este caminho. no final fica sempre um duplo obrigado. por ter proporcionado. e por ter acreditado. aprender exige sempre um esforço acrescido. e esta recta final, ainda mais. o cansaço é maior do que nunca. o corpo, maltratado, dá de si. mas o desejo de fazer bem e bom é maior do que isso. a vida, a identidade que me resta, é definida por isso. até ao fim, as árvores morrem de pé. morto de cansaço, por dentro. mas de pé. porque a viagem, esta, essa, tem sido maior do que a vida, até. e ainda bem. porque sem isso a brusquidão da vida que me cerca não me permitiria ver mais do que o dia seguinte, depois do anterior que passou...



26/05/15

... estar presente ...


 «... o esquecimento não é só uma vis inertioe, como crêem os espíritos superfinos; antes é um poder activo, uma faculdade moderadora, à qual devemos o facto de que tudo quanto nos acontece na vida, tudo quanto absorvemos, se apresenta à nossa consciência durante o estado da «digestão» (que poderia chamar-se absorção física), do mesmo modo que o multíplice processo da assimiliação corporal tão pouco fatiga a consciencia. fechar de quando em quando as portas e janelas da consciência, permanecer insensível às ruidosas lutas do mundo subterrâneo dos nossos orgãos; fazer silêncio e tábua rasa da nossa consciência, a fim de que aí haja lugar para as funções mais nobres para governar, para rever, para pressentir (porque o nosso organismo é uma verdadeira oligarquia): eis aqui, repito, o ofício desta faculdade activa, desta vigilante guarda encarregada de manter a ordem física, a tranquilidade, a etiqueta. donde se coligue que nenhuma felicidade, nenhuma serenidade, nenhuma esperança, nenhum gozo presente poderiam existir sem a faculdade do esquecimento...»
 friedrich nietzsche

... há dias assim. em que o cansaço e o corpo dorido da doença que quer desaparecer mas não desaparece trazem as memórias. e são cinco minutos que me salvam. cinco minutos em que venho à porta e vejo pessoas que aprendi a respeitar muito pela dedicação e trabalho, pela amizade entre eles, a construírem barracas de madeira para um momento a ter lugar em breve. em que vejo a dedicação, a mesma, depois a construir um prato para surpreender os sentidos. são muito mais jovens do que eu. gosto deles. porque me fazem ver que o mundo não terá fim enquanto houver aquela vontade. e aquele brio. são cinco minutos, em que me sento e penso. gostava de surpreender um chefe com quem tenho aprendido imenso. gosto dele e de quem é connosco. do humor sempre presente. de brincar com os miúdos e com todos. do gesto que nunca esquece. ensinou-me a fazer um doce, uma vez. bebinka. pensei num gelado de maçã verde e lima para acompanhar. foi quase imediato. era o mínimo que podia fazer. arriscar. aprendi isso com ele. experimente. se não der, dá para outra coisa. mas experimente. tudo para um momento de confraternização organizado. porque alguém fazia anos. esse alguém nunca me deu aulas. mas com ele aprendi, já, muito. no dia do meu exame de pastelaria observou o que estava a fazer. no final disse-me: "já viram a vossa evolução?". ensinou-me com esta frase muito mais do que ele pode até imaginar. quando estamos a caminhar nunca olhamos para os pés. é um reflexo de protecção. podemos cair por não olhar para o caminho. ele fez-me olhar, por uns segundos, para os pés. e ver que sendo os mesmos dançam já de forma tão diferente. as mãos. as mesmas que agora cozinham com mais determinação. são só cinco minutos. cinco minutos que dão para ver que um chefe que sempre disse que sim ao que podia para ajudar, deixa um livro de receitas seu aberto na cozinha. convite à leitura. ao aprender. ao parar para espreitar. ao dizer que as certezas são sempre vãs na memória. o esquecimento é um lugar habitado por todos nós. são só cinco minutos. que limpam a tristeza. que mostram que a cozinha é um lugar de espanto. que esta viagem tem sido muito mais rica do que posso imaginar. e estando a terminar, por agora, que venha a memória e o esquecimento para ficar tudo por dizer e fazer, só mais uma vez...

23/05/15

... superação na cozinha ...


«ide! 
tendes estradas, 
tendes jardins, tendes canteiros, 
tendes pátria, tendes tectos, 
e tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... 
eu tenho a minha loucura! 
levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, 
e sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...»

josé régio


... foi das semanas mais duras e mais ricas nesta aventura de aprender cozinha. fui parar ao médico que me encheu de remédios. o corpo começa a dizer que a idade já não é para estas coisas. foi um tempo de loucura. de tentar. de perceber que os limites são só feitos de medo e desânimo. quando os colocamos de lado conseguimos superar o que parecia impossível. foi preciso estudar. passar horas a tentar. dias a experimentar. foi o tempo de regressar às bases. e foi algo importante esse movimento de regressar ao princípio de tudo. fazer. e refazer. perceber que sem saber o simples o complexo parece impossível. e depois, criar. ir buscar um cheiro que era uma memória. colocar num recipiente. fazer do aroma um ingrediente de uma refeição. em memória de alguém que está sempre comigo, não estando. l'air du temp. era o perfume que usava a minha tia que me faz toda a falta do mundo. seria o seu dia de anos. esteve comigo, naquele aroma que coloquei numa sobremesa que foi muito mais do que isso. foi o ponto de chegada ao momento em que sei o que fiz bem e o que fiz mal. sabendo explicar a razão de ambas. e que me encheu dessa memória do rosto doce, da ternura imensa e da saudade. foi um tempo de fazer a memória um lugar doce. nem que fosse só por breves instantes. e terminar estes dias com a arte de fazer pão "à antiga". o sabor vem do tempo. disse um chefe que sabe muito mais do que alguma vez sonharei saber. aquele sabor do pão quente a sair do forno, pão feito de tempo e mãos que o sabem amassar, levaram-me ainda mais longe. à razão das coisas simples. dos sabores. das coisas que se vivem ou que deixamos passar. a cozinha é feita de tudo isto. do "ar do tempo". e que assim seja para quem aprendeu a amar esta coisa de criar algo impossível para colocar no prato...

18/05/15

... dedicação na cozinha ...


... há um filme que não esqueço. chama-se luzes da ribalta. recordo-me frequentemente de várias coisas. os detalhes. nos detalhes estão escondidas as essências das obras-primas. e a música. às vezes os dias fazem-se longos demais. regresso à cozinha. é preciso arriscar. levar mais longe o que se aprendeu. errar. errar muito. a poucos dias de um "exame" pergunto-me se serei capaz de conseguir o que desejo. não quero a mestria dos livros nem dos outros. dos sábios. não anseio pela perfeição de nada. ainda não é esse o meu tempo. o meu tempo é o da imperfeição. da falha e da falta. da loucura da experiência. da ilusão do pensar que se está a fazer algo de novo. da conquista ou da desilusão. é sempre assim. não se podem saltar etapas na cozinha. não se pode ser mestre sem ter sido aprendiz. nem desejar ou esperar sinceramente que numa primeira tentativa nos venha logo a sair uma obra inesquecível. importa romper o medo. saber que desejando mais se consegue mais. que se descobre a bravura do fazer com vontade. e a loucura apaixonada de o tentar. mesmo que não se consiga, agora. a vida também é assim. e a cozinha, sendo vida. tem tudo isso guardado dentro de si para quem ousar descobrir. maquiavel tem uma passagem a meio do seu príncipe em que recomenda: nunca temer. nunca deixar de ousar. podem encher-se os navios de loucos mas estes são naufragam se chocarem com terra e rocha. sejamos então, um pouco loucos. se falhar aprenderei. se não falhar, aprenderei ainda mais. porque só o ter vencido o medo é já uma lição maior do que todas as outras...


17/05/15

... abandono na cozinha ...


«...só passado um bom quarto de hora, quando os olhos se habituaram à meia treva, joão sem medo deu conta deste espectáculo na verdade surpreendente: as árvores espreguiçavam -se, enquanto os pássaros, em lugar de cantarem, abriam os bicos em bocejos melodiosos. ao mesmo tempo, alongadas na terra, com as cabecinhas de cores nos travesseiros das ervas, as flores ressonavam alto perfumes intensos. e as fontes embaladoras desdobravam o seu vagaroso sussurro de tédio dormente. o próprio joão sem medo começou a sentir um torpor de morte provisória a pesar -lhe nas pálpebras e a tolher-lhe os braços e as pernas. de tal forma que resolveu acordar -se com dois ou três gritos e insultos que vararam a floresta adormecida: – então aqui não vive ninguém? nem nereidas, nem faunos, nem gnomos, nem nada? foi para esta pasmaceira que eu escalei o muro, digam-me lá?...»
josé gomes ferrreira

... às vezes penso que fabulosas oportunidades vão tendo aqueles que chegaram cedo à cozinha. ao aprender a nobre arte de criar para dar a provar. se tivesse chegado antes de estar quebrado, partido, imperfeito demais para acolher tudo saberia que o lugar da imaginação tem, aqui, toda a sua potencialidade. criar qualquer coisa que nunca se fez pode ser o mais difícil de tudo quando se fala de cozinhar. é fácil seguir o que outros fizeram. replicar uma receita. dar um sentido, testar, experimentar, fazer e refazer um prato é das coisas mais desafiantes que existem. se no mundo tudo está inventado, na cozinha sente-se que, sabendo as bases muito bem, tudo está por inventar. o possível e o impossível. a combinação provável e a improvável. está tudo por criar. sempre. e isso é fascinante. isso é, talvez, onde reside a beleza de cada dia longo ao fim do qual se espera ter feito algo que nunca ninguém tinha feito. testar é mesmo preciso. ninguém vê isso no resultado final. mas há horas e horas de estudo. de erros. de tentativas falhadas. de pequenas conquistas que se suspendem. de ligações e memórias que se interligam. de conversas. de pedidos de ideias. de ajudas. no final, só resta o cozinheiro e a sua criação. frente a frente. como se um e o outro fossem complementares. é preciso saber explicar o que está ali. criado. porque não é natural perceber o que está na alma de uma confecção. é preciso saber explicar. a destruição de tudo acontece depois. na degustação. é destruído o produto. para deleite dos comensais. sem o peso das horas. vou ao encontro de allan poe. sempre tive esse espaço de alma maldito. e cada vez mais escuro ele está. porque é preciso perceber que, nem todos os que comem sabem comer. sabem ver e sentir o que comem. tudo isso se pode perder numa só garfada. o homem não foi criado para compreender o outro. é anti-natural essa condição de compreensão. cada vez mais tenho essa certeza. é por isso que o meu último refúgio é este do silêncio e solidão da cozinha. porque por mais que ninguém saiba ou sinta, ninguém dê valor ou saiba o real sentido de um sabor, é o caminho que se faz ao criar, em cozinha, que liberta. que salva. que permite dizer que é preciso continuar. mesmo que as árvores só se espreguicem e os passos sejam mais cansados do que nunca... 

14/05/15

... segredos na cozinha ...


... há nesta coisa de não contar e não partilhar o que se faz, gostava de fazer, pensa fazer, algo de pernicioso quando isso se passa na cozinha. é a mania estúpida do "o segredo é a alma do negócio". ou "isso tem um segredo qualquer". ao fim de nove ou dez horas. ao fim de doze ou quinze horas na cozinha, seguidas, isso passa. ou devia passar. mas não passa. apetece-me sempre gritar: é a alma e a experiência! o segredo. o resto é tudo para dizer. e digo. vou fazer isto e vou tentar fazer assim. e depois de tentar digo. fiz. assim. mas também fiz este atalho ou esta coisa que não devia ter feito mas fiz porque ganhei aqui o sabor que perdi ali. foram, hoje, por exemplo, três horas para fazer o meu primeiro gelado. mas não foi meu. foi só um gelado. só é uma forma de dizer. foi um gelado com o que ouvi de dez ou mais pessoas. cada passo que me disseram. cada dica. cada "truque". cada "segredo". mais o que li. e o que vi. e o que provei. cozinhar é isto. fiquei alegre com o resultado. estava "bom". precisava de trabalhar umas coisas no fim. devia ir a congelar. ou melhor, a esfriar um pouco mais. não teve tempo. foi comido em conversa. um litro. estava mais ou menos bom. não era meu. era a soma de todas as partes. e mais o que inventei. falta tanto disto. desta coisa de pensar em conjunto. quando me sentei um pouco para esperar a descida de temperatura dos oitenta e tal graus até aos quatro graus e pouco, conversei. há pessoas com quem é bom conversar. mesmo que vida me tenha ensinado a estar calado. sempre. de como podemos ser mais ou menos ricos só por vivermos as experiências que nos são dadas nesta vida. viver é estar. e deixar as coisas acontecerem e nós acontecermos com elas. nelas. envolvidos. não indo com a corrente. sendo a corrente. e voltar lá, de tempos a tempos, como memória. o gelado ia decrescendo de temperatura. ficaria ali muito mais horas. somos aquilo que deixamos que vida nos faça viver. e quando deixamos que a vida aconteça em nós. há nisto um misto de beleza e de dor. porque cada vivência dessas foi plena. ficou gravada na pele, nos gestos, na essência do que somos. e traz uma dor. sempre. porque caímos vezes demais por viver assim. as quedas, com a idade, doem mais. aprendemos a evitar cada uma delas. ou simplesmente deixamos de viver. fazer pela primeira vez um gelado simples de cacau deu nisto. não foi só um gelado. estava bom, mais ou menos. mas não ficou nem um pedaço para contar nenhuma história. essas estavam e estão todas contadas...

13/05/15

... da alma na cozinha ...


«...que difícil é propor um problema ao entendimento alheio sem corromper esse entendimento pela maneira de propor! se dizemos: acho isto belo, acho obscuro, ou outra coisa semelhante, arrastamos a imaginação para este juízo, ou irritamo-la, levando-a ao juízo contrário. mais vale nada dizer, e então o outro julga segundo o que é, ou segundo o que é naquele momento, e de acordo com o que as outras circunstâncias, de que não somos responsáveis, lá tiverem posto. mas pelo menos nós não pusemos nada; a não ser que o nosso silêncio tenha também o seu efeito, segundo o sentido e a interpretação que ele estiver disposto a atribuir-lhe, ou segundo o que depreende dos movimentos e da expressão do rosto, ou do tom de voz, conforme for melhor ou pior fisionomista: tão difícil é não deslocar um entendimento da sua base natural, ou antes, tão pouco um entendimento tem de firme e estável!...»

pascal

... são coisas simples. vinte minutos. um risotto. não esperar vinte minutos por um risotto é uma ofensa. o tempo e comida sempre foram velhos amantes. sábios e sabidos. queremos trocar-lhes as voltas introduzindo máquinas e "novas" técnicas. mas com o tempo e com a comida não se brinca. não são de modos simpáticos de serem enganados. há nisto uma impressionante certeza. são as mãos que os unem. ao tempo e à cozinha. e que os podem, também, separar. quem ganha ou perde com a união de ambos ou a sua separação somos nós. ver cozinhar quem sabe isto tem um espanto encantador. nem que seja por um segundo de um dia inteiro. "está a ver, é assim". e antes mesmo de entrar o risotto no tacho já cheirava tudo ao que viria ser. era o tempo. foi preciso o tempo. era o segredo que tudo parecia fazer tão simples. roubada a prova, lá estava. era preciso atrasar o serviço para sair tudo bem. e o tempo de vida depois de feito é curto. como todas as coisas gravadas com estes sabores feitos de tanto. a cozinha portuguesa e quem cozinha anda a esquecer-se disto. das coisas a seu tempo como o que é de césar a césar pertence. por muitos truques que seja possível inventar nada existe de melhor para alguém cozinhar algo inesquecível do que o tempo passado entre a lentidão das coisas feitas com dedicação e saber. aprender isto é ter uma das maiores lições que já tive nesta aventura. percebi hoje que tinha aprendido muito mais do que imagino, até. percebi que já consegui entender tudo isto no correr exausto dos dias passados numa cozinha entre o calor e o desafio. o corpo sente e ressente-se. a alma também. mas tudo vale por encontrar, num dia, em tantas horas de uma vida, um minuto como aquele em que, sem ninguém saber, estive a ver cozinhar com tempo quem sabe fazer tudo o que quiser porque o faz com alma...

12/05/15

... refazer o que se sabe ...


...«toda a gente que eu conheço e que fala comigo 
nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho, 
nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida. 
 quem me dera ouvir de alguém a voz humana 
que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; 
que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! 
não, são todos o ideal, se os oiço e me falam. 
quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? 
ó príncipes, meus irmãos, arre, estou farto de semideuses! 
onde é que há gente no mundo?...»

fernando pessoa

... foram talvez as coisas que me ensinaram quando eu era pequeno. que se cumprimenta toda a gente. que os outros são tanto como nós. que devemos respeitar o que os outros sabem e como são. mesmo que não possamos compreender. a cozinha é um lugar de extremos. de exageros. de brutalidades. mas para quem deseja, honestamente, aprender é preciso uma coisa. aceitar refazer o que sabe. perceber que o que fez, o que provou, o que conhece, tem um lugar de referência. nunca de sobranceria ou supremacia. este acto simples alarga imensamente a capacidade de acolher novas experiências. há coisas que julgo saber fazer bem. nunca digo. peço que me expliquem. vejo técnicas. todas. formas de fazer. quantas mais, melhor. provo. nunca digo: já comi melhor. digo: está bom. ou pergunto: para que é. temos que ver o todo. perceber que o que pensamos pode não ser o que o outro tem em mente. a finalidade nem sempre é a mesma. hoje, num dia em que ia vestido de uma tristeza um pouco maior por perceber e sentir a injustiça do mundo e da vida, vi-me desafiado. nunca tinha feito coisa igual. percebi a técnica. gostei do sabor. sem mais nada. não precisava mexer em nada. nem mais, nem menos. na minha cabeça não estava a receita original que não conhecia. fiquei curioso para um dia a provar. o que estava na minha cabeça e ficou foi o processo que eu podia aplicar a tantas coisas mais. aprendi. porque não esperei nada mais que não fosse isso. aprender. é preciso aquilo a que modernamente se chama de "humildade" e que antigamente se chamava de "curiosidade". nunca perceberei quem tem certezas absolutas. trazer isso para a cozinha não faz qualquer sentido. a cozinha exige o divertimento da experiência. mesmo que tudo falhe é com isso que se aprende. porque se tentou. porque, para além de se ter tentado não se achou que se sabia. e com isto, o conhecimento cresce. percebo cada vez mais que quando esta aventura terminar terei o abismo de não saber o que fazer com isto. sinto que perdi as forças todas para entender a vida. sei ainda que não me resta muito mais do que pensar. pensar sempre. em silêncio. para não incomodar. e talvez, de tempos a tempos, cozinhar qualquer coisa que me lembre tudo aquilo que aceitei aprender neste pedaço de tempo em que me ensinaram tanto. tudo aquilo que deixei entrar em mim como saber e guardarei como memória. é talvez esta a maior de todas as belezas deste caminho de aprender a cozinhar com quem sabe...


11/05/15

... desalento no sabor ...


«...deu-se então em mim uma espécie de estalido. o panorama que se avistava daquele quarto provocava-me um sentimento de inquietação, uma apreensão que eu já conhecera. aquelas fachadas, aquela rua deserta, aquelas silhuetas de sentinela no crepúsculo perturbavam-me à maneira insidiosa de um perfume ou de uma canção outrora familiares. e tive a certeza de que muitas vezes, àquela mesma hora, ficava ali, imóvel, à espreita, sem fazer o mínimo gesto, sem ousar sequer acender a luz. quando tornei a entrar na sala, julguei que já não havia lá ninguém, mas afinal estava a dona da casa estendida no banco de veludo. dormia. aproximei-me silenciosamente e sentei-me na outra ponta do banco. uma bandeja com um bule e duas chávenas, no meio do tapete de lã branca. tossi um pouco. ela não acordou. então, deitei chá nas duas chávenas. estava frio...»

patrick modiano

... há uma desilusão cansada que se instala. quase como o cenário de um quadro que já conhecemos. quase como um pedaço de um texto que reconhecemos. é a esperteza. ou saber jogar com as coisas e como elas correm. precisava tanto que, neste último reduto de esperança, nada fosse como é agora. já nem sei a razão. há muito dei à esperança um lugar muito reduzido em mim. aceito tudo o que me é dado. nada mais. não espero nada de coisa nenhuma. nem de ninguém. mas observo. foi talvez a única coisa que ainda não perdi que verdadeiramente me defina ou saiba que resta em mim como essência. observo. a cozinha é um lugar de genuinidade. é por isso que aqueles que sabem não falam. fazem. deixam as mãos falarem em vez dos truques ilusórios que aparecem como grande formas de vender o vazio. a cozinha revela sempre o seu autor. e o que sabe. e o que não sabe. é quase como uma caligrafia no fim de uma vida. perceber isto é perceber que aprender a cozinhar exige a revelação. porque ninguém se pode esconder quando está a cozinhar. tudo aparecerá no final. seja bom ou mau. mais quando, numa cozinha um grupo cria em função de um desafio. aí não são só as mãos que falam. é a dedicação. o gesto simples. o querer fazer sem perguntar. o ajudar, sem dizer. é uma dádiva que se faz sem esperar reconhecimento porque, sem ela, o sabor ou a forma de tudo falhará no fim. a comida, ouvia hoje, serve para nutrir. em primeiro lugar para nutrir. cozinhar serve, em primeiro lugar, para fugir do mundo. mas ao fazer cada momento dessa fuga, sabemos que a revelação da fuga estará presente, todos os dias, na mesa. podem até não saber quem cozinha. mas uma parte, imensa, de quem faz tudo a pensar em tudo o que a vida lhe fez e faz, estará lá. são rasgos de fúria ou a calmaria de um sorriso. a vida afasta deste caminho quem nele merecia estar. às vezes é assim. guardei nas minhas mãos as de uma colega que hoje parou esta aventura para uma ainda maior. só pensei na injustiça face a outros. porque a dedicação e a consideração, a alma simples e o olhar ternurento, a bondade deviam ter outra recompensa. desejo que a vida lhe sorria. para o futuro. regresso ao pensamento limpo. amanhã cozinharei com desilusão e fúria. para com a vida. para com quem não percebe o privilégio que tem de ainda lhe ser dado mais esta oportunidade. mesmo que a escolha tenha sido feita por vontade própria e mesmo que tudo pareça tão pouco. que saiba a tudo isso. porque os sabores são todos, sempre, amargos ou doces, como a vida...

10/05/15

... a fama na cozinha ...


«...um dos preceitos mais enraizados e mais geralmente admitidos é o de acreditar que os homens possuem em si qualidades imutáveis: há homens bons ou maus, inteligentes ou estúpidos, enérgicos ou apáticos, e por aí adiante. ora, os homens não são assim. podemos, apenas dizer que um homem é mais vezes bom que mau, mais vezes inteligente que estúpido, mais vezes enérgico que apático, ou o contrário; mas classificar um homem, como sempre fazemos, de bom ou inteligente e um outro de mau ou estúpido é um erro. também os rios, todos de água, são umas vezes mais estreitos, outros rápidos, outros largos ou calmos, transparentes ou frios, caudalosos ou tépidos. ora, os homens são como os rios. cada um traz consigo a semente de todas as qualidades humanas, de que revela, em certos passos, umas características, noutros, outras, chegando mesmo, em certas ocasiões, a mostrar-se sob uma forma completamente oposta à sua natureza íntima, que, não obstante, mantém...»

tolstoi

... cozinho sempre com uma tristeza nas mãos. foi a vida que me trouxe isso. sem procurar o brilho ou esta coisa moderna que não é mais do que a fama. acho que a cozinha portuguesa está numa encruzilhada estranha. por curioso que possa parecer falta uma revolução na cozinha portuguesa. profunda. mas identitária. não de modelo mas de resultado. não de forma mas de apresentação. a verdade é que tenho pensado muito nisto. a cozinha portuguesa é triste. não há nada de mal nisso. pelo contrário. até do outro lado do mundo vinicius dizia que é sempre preciso um pouco de tristeza. porque há uma libertação nesse estado de alma ao cozinhar. o pior é que o caminho que estamos a traçar é da individualização e personalização da cozinha em vez da coerência que uma (r)evolução precisa. ensinam que um dia poderá, quem agora está a aprender, ser um "grande" chefe. estreitam-se as visões nesse caminho. é o da fama. o do salve-se quem puder. como puder. ou simplesmente surge gravado na memória as palavras ditas do: ser activo. procurar oportunidades. infelizmente não sou deste tempo. nunca soube viver e não vai ser agora que vou aprender. muito menos saberei como fazer isso. porque me parece que a fama na cozinha é o mal que vai acabar por matar essa coisa essencial que é preciso redefinir. temos uma das melhores cozinhas do mundo. os outros também. mas a verdade é que nenhuma tem o fado que a nossa tem. nem a saudade. nem a conservação da memória histórica que a nossa tem. quarenta anos de uma ditadura e a falta de uma revolução na cozinha portuguesa conservaram essências que estamos a esquecer em detrimento do espectáculo da cozinha. servir para surpreender é importante. mas a surpresa vazia e feita de uma bolha de ar é o mais alto grau de egoísmo. não tenho forças nem saber. não sei como o fazer. talvez só pensar. mas a cozinha precisa de lógica e de identidade. estamos a perder isso com as estrelas que estamos a fazer nascer na cabeça de cada um dos que um dia serão cozinheiros num país onde comer é um acto de soberania individual e colectiva. as escolas e quem ensina devia pensar nisso. talvez ser mesmo a fonte dessa revolução já que o "estrelato" individual não permite mais do que a fama como último lugar de ilusão. a cozinha portuguesa exige o que sempre a definiu. abnegação, dedicação e respeito. é um lugar colectivo. sem lugar para estas coisas que são tudo menos a sua essência. formar quem cozinhe em portugal, quem respeite a razão de ser de termos uma das cozinhas mais belas e saborosas do mundo é perceber que não podemos correr todos e de todas as formas para esse lugar individual e vazio. nem de qualquer forma. falta perceber isto. porque falta esta mudança profunda na cozinha portuguesa para se afirmar no futuro. o seu passado é rico demais para se encontrar novas formas de fazer o que quer que seja ainda. a cozinha portuguesa é um lugar de anónimos. e ainda bem. foi por isso que se manteve inteira. até agora. até agora em que o discurso das estrelas chega à cozinha. sinais de um tempo. deste tempo que não sei viver. deve ser por isso. preciso de um mergulho profundo nesse mar de saberes anónimos para me refrescar desta corrente contínua de fama num tempo de ecos. estou mesmo a precisar disso. porque tudo o resto só me desilude. profundamente. e tenho pena da nossa cozinha, por isso mesmo...

09/05/15

... saber um sabor ...


“...a inteligência também me diz, a seu modo, que este mundo é absurdo. por mais que o seu contrário, que é a razão cega, pretenda que tudo é claro, em vão espero provas, desejando, embora, que ela tivesse razão. (…) tudo o que se pode dizer é que esse mundo não é razoável em si mesmo. mas o que é absurdo é o confronto desse irracionalismo e desse desejo desvairado de clareza, cujo apelo ressoa no mais profundo do homem.”
camus

... parei e li. o artigo estava pregado na parede. adriá diz que a sua sorte foi nunca ter estudado numa escola de cozinha e por isso ter a liberdade criativa sem medos nem reservas. o local não é para leituras mas para destaques. ficou por ler com a calma necessária. há nisto muita publicidade. e muita beleza verdadeira. só é preciso saber onde começa uma e acaba a outra. a verdade é que o toque que introduziu na cozinha fez olhar para tudo de forma diferente. o que admiro mais não é o conseguido. é somente a liberdade criativa em estado quase puro. o questionar tudo. sempre. estar na cozinha onde se aprendem as regras para confecção de determinadas coisas é tão necessário como é necessário questionar sempre: será necessariamente assim? cozinhar só com técnica e pelo domínio da técnica só traz metade da beleza do sabor. o resultado pode ser muito bem "conseguido" mas muito pouco livre. o sabor exige liberdade. mas exige algo mais. experiência. agora que uma fase desta aventura está quase a terminar percebo que o tempo perdido sem pensar a cozinha e como quero que um dia possa definir a minha foi um tempo desperdiçado. ou talvez só tenha que fazer um esforço maior para pensar tudo o que ficou por pensar. a verdade é que, para se ser verdadeiramente experiente em cozinha não basta a prática. nem a técnica. nem a dedicação. faltará sempre algo se não houver conhecimento. reflexão. pensar nas razões de tantas correntes. da ideia da "terra à mesa" ou do toque "molecular". tudo se torna verdadeira vazio se for feito sem uma razão. deixei-me levar por isso. pelo correr dos dias e pelas coisas a fazer. não foi para isso que me aventurei neste duro e imenso processo de mudança de experiências pessoais e profissionais. foi para pensar tudo e encontrar um caminho. o cansaço e as forças falham sempre em algum momento. assim como a percepção do absurdo de tudo o que não é lógico. a cozinha tem uma lógica antiga. as técnicas são as mesmas desde que foram inventadas. resta saber dominar cada uma delas. o resto é mesmo esse misto de encanto e de saber. contrariar o absurdo para ganhar alguma clarividência. preciso disso. tudo o resto são coisas e o dia-a-dia que não me interessam. é preciso discutir e pensar a cozinha. o que é, o que foi, o que será. porque por muito que tente não encontro razão para mudar o que tem séculos de sabor gravado nem o contrário também. a inovação, o belo, o criar novas coisas com novos sabores, vivências que são espectáculos para os comensais. tudo tem o seu lugar. e hoje é preciso ver isso tudo. conhecer isso tudo. afasto-me por isso de tudo o que não for isso. saber fazer pensando. acho que, cada vez mais, é preciso levar isso para dentro de um espaço onde se aprende. onde se prepara para o futuro. e o futuro precisa de lógica no seu absurdo natural. nem que seja para salvar o sabor. os sabores...

07/05/15

... sobreviver na cozinha ...


«...a nós ligam-nos o nosso passado e o nosso futuro. passamos quase todo o nosso tempo livre e também quanto do nosso tempo de trabalho a deixá-los subir e descer na balança. o que o futuro excede em dimensão, substitui o passado em peso, e no fim não se distinguem os dois, a meninice torna-se clara mais tarde, tal como é o futuro, e o fim do futuro já é de facto vivido em todos os nossos suspiros e assim se torna passado. assim quase se fecha este círculo em cujo rebordo andamos. bem, este círculo pertence-nos de facto, mas só nos pertence enquanto nos mantivermos nele; se nos afastarmos para o lado uma vez que seja, por distracção, por esquecimento, por susto, por espanto, por cansaço, eis que já o perdemos no espaço; até agora tínhamos tido o nariz metido na corrente do tempo, agora retrocedemos, ex-nadadores, caminhantes actuais, e estamos perdidos. estamos do lado de fora da lei, ninguém sabe disso, mas todos nos tratam de acordo com isso.»
kafka

... com a vida aprendi o silêncio. que é um espaço. que é um lugar de observação e de solidão. a cozinha não tem silêncios. é feita de ruído. e de equipas de trabalho. de troca constante de dúvidas e de certezas. ensinar a cozinhar exige essa partilha. entre o ruído. no meio de tudo. passar por cima de tudo isso para dizer como se podem fazer as coisas para além do que já as mãos sabem naturalmente criar. este tempo passado tem sido só feito disto. desta luta constante. desta batalha imensamente cansativa. tenho aprendido imensamente. muito mais do que alguma vez pensei. e aprendi uma coisa ainda mais importante. que esse silêncio que sempre cultivei tem um valor ainda maior. por momentos abri uma excepção nesse meu silêncio para abraçar esta aventura. percebi que com ele nada ganhei. pelo contrário. preciso dele, mais do que nunca. e a ele regressarei. o homem é lobo do homem, sei disso. sei ainda mais que a cozinha é um lugar de extremos. e de dádivas. julgamos todos, tudo depressa demais. tomamos partidos. achamos tudo muito bom ou muito mau. eu sou cinzento. sempre fui. sempre serei. e ao cinzento junto o opaco do silêncio, agora. só assim posso ver que o local onde aprendo a cozinhar retomou a distribuição das "sobras" a quem precisa. porque a fome é mais forte do que a falsa moralidade das regras de responsabilidade e do medo. só assim abracei a ideia de aprender com todos os chefes que ensinam tudo o que podem ensinar. ou só assim percebi a imensa riqueza de estar a cozinhar com gente de outras terras e de outros sabores gravados nas mãos e nas memórias. ou perceber que um grupo é sempre mais produtivo quando cada coisa é entregue e feita da confiança no trabalho a fazer sem o julgamento da pessoa que o faz. reservarei o resto desta aventura a esse silêncio e esse afastamento de que sou e serei sempre feito. só assim conseguirei não desistir. porque tudo o resto são as pessoas. e a cozinha e cozinhar tem um encanto para além disso. que passa por cima de tudo. como um tecido que tece a liberdade e a vida. e se faz, se desfaz, sem ser preciso mais nada. estar disponível para aprender. e nada mais. tudo o resto é, de facto, ilusório...