29/06/15

... dessas coisas, destas coisas...


"...perante a estrutura ética, perante a estrutura cívica, perante a estrutura religiosa, perante a estrutura psicológica, perante a estrutura económica, procuramos muito mais a comodidade e a segurança do que a interrogação. Interrogação que é conhecimento, que é pôr em questão, que é imaginação e descoberta e que, com tudo isto, é caminho de verdade e liberdade...”  

antónio alçada baptista

... esquecemos a simplicidade dos sabores antigos. de quando não havia nada para além do tempo. o tempo, esse imenso senhor dos sabores e das coisas. dessas coisas doces. destas coisas feitas na cozinha de uns, para outros. num tempo perdido. sem nada. só com vontade. desejo e saber. começo por aqui uma viagem que me levará, nem sei bem onde. começo pelas bases. toda esta cozinha antiga, de sabores quase perdidos, é feita por bases de técnicas muito bem conseguidas. dominadas. e pela ausência de tudo. o nosso tempo é o contrário. é o tempo das coisas. das máquinas. do "acelerar" o processo. dos truques. das dicas. das coisas feitas por ser assim melhor e mais belo. mas aquele sabor, de uma coisa chamada "botelha em leite" feito por uma senhora com noventa e quatro anos sabia só a uma coisa. à dureza da vida. à privação. ao simples deleite necessário que uma coisa doce podia trazer em dias de festa. era abóbora menina desfiada e cozida em água com açúcar. depois, o leite. nada mais. sabia a bolacha-maria. e a tempo. a um tempo que já não existe. nem pode regressar. hoje já não temos colheres de pau, nem tachinhos decorados com flores em esmate. somos do tempo das coisas limpas. todas brancas. em inox. queremos replicar isso muito mais depressa. o segredo, destas receitas em que mergulho agora, é quase sempre só um. o tempo. demorado. longo. dedicado. o deixar ficar. "ó chefe, deixe ficar. deixe ficar isso aí para ganhar gosto". apurar. é quase sempre este o ritual. este e o das coisas feitas com orgulho. "isto só há aqui.". isto só se faz aqui. isto só se dá aqui. e ao provar consigo fazer a viagem até à sala, comum, com a terrina ao meio de onde todos retiravam a iguaria. "essa coisa do empratar é coisa moderna". antigamente ia tudo para a mesa, e o centro da mesa era o centro de tudo. para todos. esta origem do "comer" vem de longe. das casas romanas, dos deuses. dos espaços dos homens e dos espaços das mulheres. vem de longe e do deus hades. dos infernos dos fogos. do homem que está fora. da mulher que é quem abre a porta. dos lugares à mesa. tudo isso tem, nestes sabores perdidos uma razão de ser. os ovos que mostram riqueza. com ou sem ovos, o arroz doce. dizia-me um texto antigo: "com ou sem ovos dependia dos pedidos da capital no tempo da guerra. os senhores de lisboa levavam tudo. se se conseguia esconder era com ovos. caso contrário, era sem.". era só o arroz, a água, o açúcar mascavado e o forno de lenha. e esperar que pudessem os deuses ajudar a que tudo fosse bom, no final. é deste tempo e deste modo que a cozinha portuguesa é feita. a esquecida. a que não está nos restaurantes. a que é imensamente mais rica do que um polvo à lagareiro ou coisa que o valha. aquela em que agora me embrulho. para dela, tentar sair. no final, muito mais rico ou muito mais perdido... 

18/06/15

... ensaio sobre uma sobremesa ...


"não é verdade. a viagem não acaba nunca. só os viajantes acabam. e mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: «não há mais que ver», sabia que não era assim. o fim de uma viagem é apenas o começo de outra. é preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. é preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. é preciso recomeçar a viagem. Sempre."

josé saramago, viagem a portugal


...a criação de uma sobremesa precisa do seu tempo. de um tempo qualquer. a ideia de reconstruir doces tradicionais em forma de gelado não é nova. nem sequer é, inovadora. mas há sempre um caminho a fazer nestes momentos. identificar uma razão para se tentar mudar. ou criar. ou recriar. a razão é sempre o mais importante. ou será o sabor o mais importante? talvez seja isso que lhe dá a razão. essa viagem necessária. tudo começa por onde tem de começar. pelo conhecimento. pela experiência. três doces tradicionais. três regiões. a ideia era meter um país num prato. numa sobremesa. num fim de refeição. era quase impossível. é impossível tal coisa. porque é sempre preciso a viagem. como se a viagem fosse, em si mesmo, a busca que dá sabor. e dá. porque o resto é a descoberta.primeiro, o pudim abade de priscos. pelo deleite pessoal. pela textura única. pelo sabor que pode envolver todos os outros. ser, a soma de todos os outros. o norte de portugal tem um sabor a terra e a tempo. era preciso colocar isto no prato. num prato. porque nada há de mais importante do que essa memória e essa certeza. a da terra que nos segura e do tempo que nos guia. muito ou pouco. mas a sua presença abre a forma como podia transformar tudo em algo um pouco mais claro. depois o típico sabor do pastel de santa clara. a abertura da estranheza. o lugar do sagrado e do profano. uma relação entre o pecado e o que se torna familiar. se o tempo e a terra nos ligam, o sagrado e o profano, devoram-nos os pensamentos. fazem-nos desligar a razão para além do que se prova. do que se come. a gula como pecado faz sentido quando lhe juntamos um terceiro elemento. o terceiro: a encharcada. o sul traz o sol, a luz e o desvario do sabor. como se fosse um banho onde se tornam imersos os desejos. foram escolhas, como qualquer outras. todas elas de origem dita “conventual”. a mim, importa-me outra coisa. A tradição. o sabor refeito que é preciso conhecer. trazer para a mesa em portugal aquilo que temos de mais rico. o que fomos e o que sabemos fazer. a questão era depois uma só. como conjugar sabores tão ricos e tão doces. como conjugar tudo isto com um tempo de turismo, de imediatismo e de frugalidade. como o fazer sem desvirtuar a sua razão única: saciar o prazer? a sobremesa é sempre esse momento. de prazer devoto. esperado. é assim porque é assim. seja qual for a sua natureza ou a forma da refeição. os comensais esperam sempre pelo deleite final. como se fosse um despir de tudo o que ficou por dizer. por contar. por provar. e o fecho perfeito ou imperfeito da companhia. da conversa. do estar pelo estar. como transformar algo assim, invernoso, outonal, em algo fresco, limpo, inquietante. que fosse, também, motivo de conversa. era preciso regressar à infância. e pensar que num qualquer verão o que se anseia sempre é por aquele gelado. um gelado. a frescura e a cremosidade de um sabor solto. era então óbvio o caminho e foi o que escolhi. transformar os três doces em três gelados. gelado de pudim abade de priscos; gelado de pastel de santa clara e gelado de encharcada. três gelados, três regiões. era, depois preciso dar sustento a tudo isto. dar lógica, como sempre, como necessário. foi preciso regressar ao gesto. comer é, em tudo, um gesto. e as mãos são o que libertam o gesto. queria algo que fosse possível comer com as mãos. sem mais nada. que fosse um gesto dos comensais. mesmo que fosse passível de ser partilhado em jeito de brincadeira. como era feito na infância. como se faz com um sabor que se descobre. foi por isso óbvia a escolha de um cone para suporte dos gelados. fazia sentido trazer para a mesa aquele lugar de areia, de praia, de sol, de verão e de calor. são as memórias que nos fazem. é com elas que fazemos também uma sobremesa que se quer rica para os sentidos. era só preciso uma coisa final. surpreender. em cada cone, um sabor. simples “bolacha americana” a lembrar aveiro. canela, a lembrar a massa das queijadas. e amêndoa, para recordar os pasteis que ficaram de fora desta experiência. estava composta a pauta. faltava completar os movimentos. dar a frescura e o ácido. dar uma coisa diferente para além deste trio simples de vivências que agora se articulavam. dar o ácido de um limão, a lembrar a limonada de fim de tarde quente. ou a laranja, de uma algarve cada vez mais perto. ou a nêspera que cresce no jardim por estes dias de sol mais longo. era só o toque em falta. o topo, a cobertura, a forma de levar ainda mais longe a sobremesa que se criava. por fim, como se trata do fim de uma degustação, que seja o vinho madeira a dar-lhe o toque que limpa sabores entre descobertas. quase portugal inteiro num prato. faltava a história, pensei. faltava aquilo que tudo une. nada há como mais físico do que entrar, em évora ou em beja numa igreja num dia de verão imensamente quente. aquele fresco, aquele cheiro a incenso. aquele cheiro a madeira viva. uma defumação. que liga tudo enquanto se prova. se descobre. esta é a sobremesa criada. recriada. refeita. não desconstruída ou de vanguarda. só uma experiência. em si mesmo e para além disso. que seja boa. simples. imperfeita. que permita a linguagem dos deuses e dos homens. que seja viagem. feita e por fazer. que seja sempre um ponto de chegada. e de partida. que nunca cesse o desejo. nem o prazer. nem sacie ninguém. que seja só uma sobremesa. sem mais nada...




17/06/15

... da ignorância na cozinha ...


«... mas sede prudente também com os vossos iguais. não humilheis com as vossas virtudes. nunca falei de vós mesmos: ou vos gabaríeis, que é vaidade, ou vos vituperaríeis, que é estultícia. deixai antes que os outros vos descubram alguma pecha venial, que a inveja possa roer sem demasiado dano vosso. devereis ser de bastante e às vezes parecer de pouco. a avestruz não aspira a erguer-se nos ares, expondo-se a uma exemplar queda: deixa descobrir pouco a pouco a beleza das suas plumas. e sobretudo, se tiverdes paixões, não as ponhais à vista, por mais nobres que vos pareçam. não se deve consentir a todos o acesso ao nosso próprio coração. um silêncio cauto e prudente é o cofre da sensatez...»
umberto eco

... percebo o deslumbre daqueles que acham que a cozinha é criatividade em estado bruto. misturam-se umas coisas. uns sabores (muitas vezes bons) e a coisa está feita. decora-se. a coisa fica feita para ficar bonita. diferente. porque os olhos também comem. ver cozinhar quem tem o tempo nas mãos desfaz muito rapidamente tudo isso. a beleza está no gesto. demorado. com dedicação. com uma dedicação que já não existe. daquela, do tempo, dos construtores de catedrais. vivo no tempo do pré-fabricado a desejar fazer da cozinha que quero abraçar, essa do tempo das coisas sem tempo. estou quase sempre em contra ciclo. procuro, falo. pergunto. falam-me em "movimentos". agora a moda é do "campo para a mesa". como se fosse preciso perceber que a sustentabilidade assim o exige. ou que isso é, neste tempo plástico, o contra ciclo dentro do ciclo. iremos recuperar aos poucos fragmentos de coisas esquecidas, na cozinha. conhecer o que fazemos e como fazemos, por cá, é o meu ponto de partida. posso até ter toda a curiosidade do mundo para conhecer todas as cozinhas e todos os mundos fora deste nosso rectângulo. mas começar por aqui é uma exigência. batatas assadas na terra, arroz doce em forno de lenha, cabrito esfarrapado. coisas que são muito mais do que os produtos que se usam ou a criatividade que ser quer feita espectáculo. é uma essência qualquer. uma razão, maior. um sentido. que se está a perder. são conversas de horas com homens e mulheres de idade avançada no espaço em que viveram. são histórias que alguém tem que ouvir. e técnicas que alguém tem que conhecer. "para que não se percam". pedem. clamam. nunca ninguém vem perguntar como se faz. perguntam, no máximo, o que se usa. não é no que se usa que está a razão da cozinha, do resultado servido. é mesmo no lento e belo mover de mão. na espera das coisas no forno. dos cheiros que é preciso reconhecer. das cores dos caldos. tudo isso é de uma riqueza imensa. de uma identidade sem fim. escondida entre quatro paredes. ou no sussuro de uma aldeia em festa. "tem que provar isto". "mas eu queria era saber como se faz". ora "então sente-se ai." é sempre assim que começa. a conversa. essa nobre arte de ensinar quem quer ouvir. saber. aprender. porque saber cozinhar estas coisas antiga só preciso desse ingrediente secreto fabulosa a que se chama tempo...

10/06/15

... da cozinha portuguesa ...


«...enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? nunca pior auditório. ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. por esta causa não falarei hoje em céu nem inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins...»
padre antónio vieira

 ... às vezes tenho tantas saudades de tantas coisas ao mesmo tempo que parece que o ar que respiro não chega para alimentar os pensamentos. é por isso que dou por mim a pensar na cozinha que hoje queremos fazer parecer que é moderna e apelativa. sucedem-se os programas na televisão. o espectáculo em torno do cozinhar é demasiado grande para ser verdadeiro. não se acerta um tempero à primeira. nem um ponto. nem nada. estava a pensar nisto porque é preciso pensar a cozinha portuguesa. é o meu desafio nos próximos meses. e com isso preciso recuar no tempo. ter a memória das coisas. mundo. vida. sonho. quando tudo isso me falta, agora, é quando mais disso preciso para continuar esta demanda. sustenho as ideias por um momento. recordo uma aula de um professor que traz a vida para cada aula. foi um breve vídeo. sobre o sabor e o gosto. e outro texto trazido por outra professora. falava da cozinha portuguesa vista por uma visitante lá pelos anos de mil novecentos e noventa e sete. há uma coisa que só pode ser resumida assim. a nossa cozinha abraça. nenhuma como ela o faz. nós, quando cozinhamos aquilo que nos define é esse gesto. é para dar conforto. reconfortar. porque é o momento de regresso a casa. ou a celebração. ou simplesmente porque queremos afastar a tristeza de que somos feitos por breves instantes. de tão simples, isso como as técnicas que usamos, a nossa cozinha é de uma exigência extrema. quer, de quem confecciona, duas coisas essenciais: presença e atenção. cuidado. não se pode acelerar o que é tipicamente uma iguaria que precisa do seu tempo para ser preparada. uma sopa que fica ao lume uma manhã. uma chanfana que precisa descansar. um arroz de marisco que precisa "ganhar" caldo. nada disso se pode acelerar porque é contra a sua natureza. isso e cozinhar só por cozinhar. "faz-se aí qualquer coisa para acompanhar isso". isto não faz parte da cozinha portuguesa tradicional. é o contrário. "bom, bom para acompanhar isso é um arroz de feijão. mas bem puxado". é tão bom ver e  saber isto. que tudo tem o seu lugar. que tudo tem que estar bom. e tudo tem o seu valor. o seu lugar certo entre todas as coisas. tudo tem que reconfortar. porque é preciso forças para o regresso. ou para a vida. hoje que temos acesso a tudo à distância de um clic não pensamos em metade das coisas que colocamos num prato. achamos que por termos uma redução de um vinagre balsâmico de não sabemos bem de onde tudo fica melhor. recordo a conversa com um chefe sobre os "ratinhos". homens e mulheres das beiras que iam para o alentejo quando este iria ser o "celeiro de portugal", nos tempos de um estado dito novo, e regressavam com farinha de milho nos sacos que usavam como iguaria depois. precisamos saber tudo isto, outra vez. a falsa modernidade de que nos queremos cercar só nos afastam dos sabores únicos que temos para viver. é claro que não podemos cozinhar hoje como há quarenta anos. mas podemos preservar o que temos como identidade e memória. isso é uma riqueza única. a modernidade futura vai passar por aí. é quase como saber que nos livros haverá sempre algo mais do que numa rápida pesquisa no mundo virtual. é ter saudades de uma carne de porco "à mercês", quando havia uma feira e os meus pais me levavam e sabia que aquela iguaria servida numa frigideira de barro era motivo principal da visita. parto para esta descoberta de mente aberta. uma viagem que me levará não sei onde. como todas as outras. acima de tudo, espero encontrar a essência para aquela que quero que seja a minha cozinha. a que quero aprender. será, talvez, dos últimos desafios que farei por vontade própria. porque é sempre difícil ter toda a saudade e toda a tristeza no peito, constantemente. mas que seja uma descoberta. e uma certeza. a que o tempo e o modo são as coisas que fazem dos nossos sabores esses lugares únicos que iremos sempre revisitar... 

09/06/15

... viagem na cozinha ...


«...it would be wonderful to say you regretted it. it would be easy. but what does it mean? what does it mean to regret when you have no choice? it's what you can bear. there it is. no one's going to forgive me. it was death. i chose life...»
the hours (filme)

... é quase o cansaço do corredor de fundo. ao terminar a corrida. é esse que o corpo vive e absorve agora. neste preciso momento. e que viagem. que desafio este. que lugar este, da cozinha, que tem este poder e esta força. hoje fecha-se uma etapa. ficam duas para fazer. já a seguir. não há espaço para descansar. apenas uma paragem breve para respirar e olhar para o caminho feito. o resultado foi, em parte, transformado no último momento de avaliação. sinceramente, foi bom. estava bom. mais do que isso, soube a certeza de dever cumprido. em cada coisa estava a dedicação. a vontade. o amor à cozinha. tudo com coisas simples. sardinha. tomate. pimento. farinha. ovos. pouco mais. mas muita vontade. de fazer. e de fazer bem. de saber. e de saber bem. as coisas. as coisas todas que eram preciso saber. que são precisas saber. e nos momentos de dúvida surgiu tudo claro. numa escola imperfeita, cheia de gente que erra, nós somos mais uns. e não há maior lição do que esta. para quem vai enfrentar o universo profissional da cozinha. a certeza que tudo pode correr mal. que podem faltar produtos. que pode um chefe estar de mau humor. que um ego pode ser maior do que outro. que os dias não são todos iguais. que alguém pode parecer saber fazer as coisas e não o saber. nunca nenhuma escola podia ensinar tanto como quando não nega isso a quem aprende. que nos "obriga" a contactar com vários chefes. que nos colocam perante momentos de desânimo ou de alegria. às vezes no mesmo dia. é esta escola que precisamos. para aprender cozinha. repleta daquilo que nos torna humanos. verdadeiramente humanos. o ser preciso ser maior e melhor do que as nossas imperfeições. perceber isto é aprender cozinha. isto e terminar com a ideia que aprendi mesmo muito. com alguns chefes, as técnicas. com outros, olhares e visões. e com outros, a ser desafiado. com todos aprendi o que é isto de cozinhar. onde está a alma disto tudo. e a vontade. redescobrir a vontade de aprender algo é maravilhoso. despertar isso é mesmo uma arte que só alguns conseguem. enquanto arrumava as coisas no final de um dia, mais um, pensava nesse agradecimento necessário. por ter ouvido sempre, cada pessoa, aprendi. perdi todas as certezas que tinha. e ainda bem. foi por as ter perdido que consegui encontrar um caminho para a minha cozinha. a que vou querer, agora, aprender verdadeiramente a fazer. uma cozinha que tem raízes. explicação. memória. história. e sabor. podia ter aprendido muito mais? não. podia tudo ter sido melhor. não sei. sei que foi o que tinha que ser. e foi transformador. verdadeiramente. porque quando uma escola que ensina cozinha coloca a arte de viver como sabor para ser aprendido ao lado das técnicas que são precisas dominar, sabemos que estamos no lugar certo. as máquinas fazem qualquer coisa melhor do que nós porque não erram. mas ainda bem que nós erramos. é por isso que aprendemos sempre mais. que o tempo que agora começa seja isso tudo. com tudo o que a vida tem. de bom e de mau. porque o resto é só a nobre e imensa arte de cozinhar que agora reina nas mãos de quem ganhou um imenso gosto e dedicação a este ofício...

06/06/15

... confidências de cozinha ...



«...basta pum basta!!! 
uma geração que consente deixar-se representar por um dantas é uma geração que nunca o foi. é um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! é uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero! 
abaixo a geração! 
morra o dantas, morra! pim!...»
almada negreiros

... às vezes relembro o que aprendi com a vida. a ouvir, mais do que a falar. a nunca responder a nada sem pensar. a esperar. a não esperar nada. mas esperar sempre. a cozinha tem-me ensinado mais. a virtude do tempo. do saber que cada coisa tem, realmente, o seu tempo. e a ouvir, ainda mais. não sei se, terminada quase que está esta parte da viagem, se sei cozinhar um pouco mais ou melhor. sei que me desafiei. em cada momento. em cada pergunta que fiz. em cada prato que confeccionei. que me desafiei sempre. quer no que tinha como certo. quer nas dúvidas que sempre tive e mantenho. aprendi que só tendo uma abertura imensa de espírito para aprender com os outros se pode, de facto, aprender cozinha. aprendi que há chefes com tanta experiência que o saber só pode ser lido nas mãos. e aprendi com outros que a idade não é sinónimo de nada. aprendi com os colegas mais novos que podemos sempre desafiar os nossos limites. aprendi com os mais velhos que a verdade do que sabemos só pode servir de referência para fazer mais e melhor. esta fase que agora termina para em breve retomar, foi feita de dificuldades. o trabalho físico que nunca tinha abraçado. o corpo cansado demais para aguentar ainda mais porque é sempre mais aquilo que a cozinha exige de cada um. o desligar de uma vida profissional anterior. a saudade de tudo isso e a falta. o fechar de um ciclo. o fechar de uma vida. a fuga e a incerteza. e a reflexão. o perceber que a cozinha em portugal está a precisar de um rumo. de recuperar muito para que não se perca no tempo e no modo. que não basta falar de produto nacional se não se falar das formas ancestrais de fazer bem e bom o que só nós sabemos fazer. saber qual o caminho a fazer. perceber isso em cada conversa de fim de tarde. em cada dia em que se ficava um pouco mais na cozinha em troca de ideias com chefes que nunca diziam que não a explicar um pouco mais. é muito importante isso. saber que eles que estão ali para ensinar não reservam nenhum segredo. os segredos em cozinha não existem. basta perguntar. e a pergunta é, em cozinha, sabor. sabor que se vai colocar num prato. aprender que tudo o que se fizer com dedicação e vontade terá um sabor diferente. que arriscar é experimentar. experimentar primeiro. saber as técnicas como se sabe ler ou escrever. perceber que, com isso, tudo se pode fazer. basta querer. e é preciso querer muito para se estar e sobreviver na cozinha. é dos ambientes mais duros, mais brutais, mais rudes. o cozinheiro pode e deve ser o mestre, o artista, que no meio de tudo isso, de todo esse ambiente encontra a beleza. coloca a beleza num prato para os outros. perceber que os egos não entram na equação da cozinha. mesmo que este seja o tempo das estrelas. cozinhar é para os outros. sempre. antes de tudo o mais. as estrelas são como tudo o resto. surgem e vão. os outros voltam ou não. e dos outros é que vive um cozinheiro. do sabor que tem para lhes oferecer. das memórias. criadas. recriadas. a cozinha tem que ser um lugar de memória mais do que instantes. recuperar esse estatuto de permanência. de constância. com beleza, claro, mas com coerência. esta viagem que agora me leva para uma nova fase com mais desafios ainda será para mim esse espaço de confirmação. de procura que vai continuar. mas com a certeza que, mesmo sem saber se cozinho bem ou mal, sei que ideia, razão, lógica ou essência quero para aquilo que vou cozinhar. isso pode não ser muito, mas já é alguma coisa. haja forças para continuar...

03/06/15

... o desafio da cozinha ...


«...alice não pôde evitar um sorriso, ao dizer: - sabes, eu também pensava que os unicórnios eram monstros fabulosos! nunca tinha visto um vivo!
 - Bem, agora já nos vimos um ao outro – constatou o unicórnio. – se acreditares em mim, eu acredito em ti. de acordo?...»
lewis caroll

... este é o tempo que termina. de exame. de provar. é um momento desafiante. quando o corpo só pede descanso e que o deixem em paz por um pouco, quase a rebentar por todos os lados de fadiga, eis que surge o momento de provar o que se espreitou durante a viagem. nunca vi os exames como momentos de prova. vejo-os como elementos desafiantes. onde nos temos que superar. tentar, pelo menos. isto da cozinha tem muito que se lhe diga. mas a verdade é que ainda mais nestes momentos. a razão é simples. cada momento de avaliação que tenho ultrapassado tem sido definidor para mim. ao terminar, mais um, ganhei muitas dúvidas. mas muitas certezas, também. a mais importante: a que tipo de cozinha quero abraçar. a palavra que a define é simples: identidade. a ela ligo coerência e memória. percebo que se fugir disto fujo da cozinha que quero que seja a minha mesmo que saiba que devo e tenho que aprender todas as outras. e isso foi outra certeza aprendida. porque trabalhei com ingredientes que dos quais os sabores não sou particular apreciador. mas obriguei-me a isso. é um exercício reconciliador. com o gosto e o sabor. que é para os outros antes de ser para nós. nós que o preparamos. e depois o risco. a gestão do que sabemos que podemos arriscar e como o fazer. um passo de cada vez. mas caminhando sempre em frente para novas descobertas. ficar no mesmo lugar, em cozinha, é deixar morrer a vontade de criar. e isso é, sem dúvida, o fim de tudo. e a última certeza. que é ouvindo as pessoas que se aprende. cada chefe, uma visão. mas é preciso ir mais e ouvir mais gente. a senhora do economato que sorri e ajuda e prova e diz: está bom! ou alguém que tem ajudado muito criando momentos para nós aprendermos para além do óbvio que nos diz: porque não revê isto, este sabor. não ter medo de ouvir que algo não está como o esperado. evoluir a partir daí. não é rebatendo só para provar um ponto de vista que crescemos na cozinha. é partindo muita pedra. trabalhando imenso. falhando muito mais do que se acerta. é por isso que um exame, um momento de avaliação em que alguém que prova diz: é pá, isto está mesmo bom, fica na memória como um abraço a todos aqueles que deram a sua opinião. há nisto algo de certo. que nunca, quem cozinha, cozinha sozinho. e que um exame nunca é só um exame. é mesmo o momento em que começamos a pensar: o meu caminho é este. mesmo que conheça, todos ou quase todos os outros, sei que é uma cozinha com identidade que quero para mim. por isso e por tudo, esta aventura de aprender cozinha que agora fecha uma parte do pano tem-me ensinado muito mais do que alguma vez esperei...