10/08/15

... saberes de vento e mar ...


“- a aventura nos vai guiando melhor as coisas do que pudéramos desejar; ali estão, amigo sancho pança, trinta desaforados gigantes, ou pouco mais, a quem penso combater e tirar-lhes, a todos, as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; será boa guerra, pois é grande serviço prestado a deus o de extirpar tão má semente da face da terra.
- que gigantes? - inquiriu sancho pança.
- aqueles que vês ali, com grandes braços - respondeu-lhe o amo; - alguns há que os têm de quase duas léguas. (…)”.

d. quixote, cervantes

... o saco de farinha agitava-se em contraciclo com o movimento das ondas. nas mãos. dentro, alguns carapaus. o barco era pequeno. tipo traineira. com uma cabine a meio. o homem fazia aquilo sem reparar que o estava a ver. era pescador. fritava o peixe. deixei tudo acontecer. vi. revi cada gesto. para colocar a farinha no peixe era só aquilo. a farinha dentro do saco. o peixe também. as ondas iam para um lado e as mãos para o outro. tirava o peixe. fritava. meti conversa. é assim. a vida é dura. se gostarem comem. se não gostarem, comem também. e o sal, perguntei. estavam ali naquela caixa, com os outros peixes. o mar é salgado. estiveram ali meia hora. só isso. lembrei disso. dessa breve conversa quando o senhor lino me falava da farinha que hoje se vende. homem de setenta e quatro anos. os dois, o pescador cujo nome não soube e o senhor lino cruzaram o meu caminho por acaso. por sorte. sabe meu amigo, de tudo se faz farinha. de milho, trigo, cevada. de ervilhas. o pior é o tremoço. de dezenas de moinhos só o dele funcionava. funciona, ainda. mostrou-me tudo. tinha uma revista colada ao subir das escadas. com o papa bento. agora já não é este. é o outro. mas fica bem aqui. sabe, já ninguém quer fazer ou saber disto. não há um ferreiro. nem na cidade. faço todas as peças. quando cheguei estive também a ver antes de meter conversa. e vi-o a consertar o eixo. a alma, como lhe chamou. sabe, isto é um motor. é como as mulheres. é preciso saber como tratar um motor. é como as mulheres, compreende. falou-me de tudo. e dos gigantes. dos que cervantes talvez tenha visto como eu vi quando uma vela se soltou das mãos experientes do homem que fazia farinha. tinha vida. disse-me: cuidado com a cara. as cordas batiam com força. e foi com força que as segurou e amarrou. a farinha, colocada nas mãos, era diferente. pura. moída ali. para pão. para o que for preciso. não era já a farinha do homem do mar. mas esse disse-me logo. do mal o menos, que esta é de milho. fritar peixe com farinha branca é roubar-lhe o sol do mar, já um dia tinha ouvido. e sabor, digo eu que ando nessa busca. o sabor. a verdade é que o que ouve que  quer cozinhar para além do que hoje se faz e quer regressar a esta origem das coisas da cozinha portuguesa é que: já ninguém sabe fazer isto. o senhor lino será talvez, no meio daquela serra, o último domador de gigantes de vento. e homem que sabe fazer da farinha alimento. já ninguém saberá fazer aquilo depois dele. porque dele é a comenda e o saber. é perceber isto meia dúzia de quilómetros depois. por provar um pastel. na receita que até já fiz vem: amêndoa. faz-se com amêndoa em pó. não é. é com amêndoa partida em almofariz. simples, mas que faz toda a diferença ao provar. estas coisas perdidas estão a fazer da cozinha portuguesa uma sombra do que ela é. não os produtos. o saber fazer. não há aqui qualquer segredo ou posse de conhecimento ancestral. é só ouvir. perceber que a essência não é aquela que se vende hoje nos restaurantes que reclamam algo que não oferecem. esqueceram-se que a cozinha portuguesa, sabe a mar e a vento da serra. mesmo sem ninguém o saber mais...

... tanto para aprender ...


"...o segredo da felicidade é encontrar a nossa alegria na alegria dos outros..."
alexandre herculano

... quando cheguei disseram-me: este é o chefe tiago. esta é a dona amália. este o rodrigo. esta é a dona júlia. a cozinha era um lugar desconhecido. como qualquer espectáculo é preciso perceber a lógica. a coreografia. nunca pensei aprender tanto. foi o melhor lugar do mundo para começar um caminho onde ainda não passo de um aprendiz. tanto mas tanto para aprender. e aprendi com cada pessoa. o chefe que dizia: este é o melhor prato do mundo. aprendi com isso o valor do nosso trabalho. pela exigência que temos que ter em cada prato, o primeiro e o último. pelo facto de queremos sempre que, efectivamente, aquele seja o melhor manjar do mundo para quem o degusta. e não importa quem seja. aprendi que há experiência que por muito que se ensine não se pode aprender porque são dezenas de anos nas mãos. as senhoras daquela cozinha provam isso a qualquer um. são um exemplo de luta e de vida. e de trabalho. do que é o trabalho. e trabalhar. verdadeiramente. e saber cozinhar, com verdade. já não há gente assim. felizmente, ali, existe. percebi que há coisas que se podem aprender. outras não. estão em nós. é a vida que se grava em cada dia. em cada coisa experimentada. perguntei: mas cozinhamos para o quê? e a resposta foi: para a felicidade. e repliquei: e se não houver felicidade? haja alegria, recebi como resposta. percebi que em cozinha não há lugar para impossíveis. nada é impossível. não há, faz-se de outra forma. não pode é faltar coragem e vontade. foi, sem dúvida, uma aprendizagem imensa. como se a vida toda estivesse ali, entre cenouras e tachos, entre pedidos e guerras, entre saberes e sabores. percebi que quem leva as coisas aos comensais sabe como comem. ouvi o senhor diamantino, o flávio, a carla, a carlita, todos eles. ouvi cada coisa que disseram. aprendi com eles que o tempo é coisa que se gere. que ouvir é uma arte. que saber o tempo para cada coisa, uma arte maior. o sucesso do que um cozinheiro faz está nas mãos de quem o transporta. em grande parte, está. mesmo que essa seja uma luta que não me pertence. aprendi com o sorriso com que se pode acolher quem chega. com o gil, o ricardo, a sónia e a dona isabel. aprendi que na sombra reside muito do segredo do que se faz e como se faz quando se quer fazer bem. as "senhoras dos andares" sabem tudo o que se passa e como se passa. conhecem quem passa por um espaço onde todos habitam como ninguém. entram na esfera do privado, do íntimo, e guardam segredo. são o sangue de uma casa que acolhe gente de todos os lugares que são todos os lugares menos aquele que é só para descansar e seguir viagem. aprendi que a força de vontade é maior do que todos os obstáculos. com o senhor júlio, percebi que a essência das coisas está nos detalhes. cozinhar é tudo isto. ver quem segue no leme de um barco a almoçar junto com o seu pessoal a quem, deliciosamente alguns chamam de "menina sofia" é algo raro. faz a diferença por muito que se pense que não. aprendi que o segredo de uma boa cozinha está em, verdadeiramente, se saber cozinhar. sem técnicas ou truques. sem nada dessas coisas modernas que querem vender num tempo de ilusão. cozinhar. ter poucas coisas, simples, boas, plenas e com elas fazer algo melhor, maior, mais belo para quem degusta ter o prazer de tudo isso e sentir que valeu a pena aquele momento. sem segredos. só um. a alma de tudo isto está nas pessoas. em cada uma delas. e no que todas elas, em conjunto, conseguem. e conseguem o possível e o impossível. eu passei por lá. por um breve instante. só isso. guardarei cada uma destas recordações como algo que não quero esquecer. ficaram em mim. foi uma delicia, sincera...