07/06/16

... perceber a cozinha ...


“se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar.”

josé saramago

... sabe, o pato fica com é com sumo de laranja e uma salsa fresca com mel por cima. uma conversa de cinco minutos com uma senhora de olhar curioso a quem tinha prometido um prato de pato feito com dedicação. ter esta possibilidade é um luxo. cozinhar para um cliente no meio de um dia de serviço normal. a seu pedido. tentar perceber o que gosta, o que quer, ter tempo para conversar. com isso, aprender. perceber que quem nos visita quer provar os nossos sabores. o que nos define. ter o privilégio de poder cozinhar com produtos frescos. sempre frescos. cozinhar aquilo que outros nos deixaram, que foram evoluindo pelo passar de muitas mãos e de muitos outros pedaços de tempo que não conheci. respeitar isso. não ferir isso com truques ou artimanhas ou produtos que nada dizem à nossa cozinha. a portuguesa. e toda ela. a que vai do arroz de perdiz, de mesa nobre, ao cozido ou às sardinhas. quando cozinho quero que quem prove saiba que está a comer algo com uma autenticidade que não posso desrespeitar. se o fizer, destruirei aquilo que me deixaram, tantos, de melhor. a memória histórica feita sabor. é difícil construir este equilíbrio no tempo que corre agora. todos procuram uma modernidade para além do que é o legado. queremos tornar tudo mais belo do que é a essência de um prato. gostei e gosto muito que para quem cozinho descreva o local e os sabores como uma cliente o fez: home away from home. gostei mesmo muito desta ideia. é essa a forma como trabalho todos os dias. em cada prato, em cada confecção. obrigado pelo profissionalismo da coisa, pela excelência na confecção, assento quase sempre tudo nessa razão de ser. transportar as pessoas, pelo sabor, a algo que as reconforte. não concebo a cozinha de outra forma. nem para o lado do espectáculo, nem para o seu oposto. acho que a refeição deve ser um momento de prazer. não tenho medo da palavra. é mesmo isso, prazer. dos sentidos mas acima de tudo da presença. do estar à mesa e ser a mesa a centralidade de um momento em que a comida é senhora de tudo e os sabores são a essência e finalidade para quem cozinha. tenho, nesse aspecto, a difícil tarefa que é, actualmente, comprar fresco e vender com qualidade. porque quando se compra fresco, por exemplo, o peixe do mar, há uns mais pequenos e outros maiores. não surgem embalados, todos com x gramas, limpos e "higienizados". são diferentes, todos eles. é preciso limpar. cortar, fazer e refazer. é preciso trabalhar o produto e não só "desembalar". fomos nos afastando muito desta cozinha, infelizmente. dou-me por feliz por a poder fazer. dá muito mais trabalho é verdade. é um risco muito maior. é verdade. mas nada se equipara ao prazer de poder oferecer isto a quem degusta num momento que desejo que vá guardar consigo por muito tempo. a verdade é que a cozinha portuguesa típica vive sempre disto. das lulas que são limpas e feitas na hora, do peixe que é preparado e grelhado fresco, das carnes marinadas sem congelação prévia ou coisas parecidas. vive da pobreza que a marca tanto como da riqueza que a define em sabor e exigência. que seja sempre este o caminho. pelo menos o meu, na chefia de cozinha. que disto me recorde sempre. porque isto, sim, é essência e razão de cozinhar...

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