18/01/17

... cozinha d'outro tempo...


...«os rituais tradicionais da religião e da vida quotidiana sumiram-se deste mundo vastamente. mas o seu desaparecimento causou pena. sempre que as pessoas têm oportunidade, tentam satisfazer a sua fome cerimonial, mesmo que o rito com que a mitigam seja inteiramente destituído de significado...»
aldous huxley

... a vantagem de não se chefiar directamente uma cozinha é a de poder ganhar tempo a cozinhar. a chefia implica representação, gestão, controlo. a cozinha exige conhecimento, imaginação, rituais, dedicação. são coisas opostas e decisivas. o tempo de descobrir leva-me a percorrer aldeias esquecidas. gente que diz que o que faz não importa e não sabe que outros acham que o que fazem é um luxo. para eles, a vida foi sempre assim. a senhora que faz broas de abóbora e pão a lenha acha que o mundo inteiro tem o tamanho da sua aldeia e do mercado onde vende. o fim de cada rua é mesmo o fim do mundo. os fumeiros feitos de forma artesanal, verdadeiramente artesanal, ou o queijo refeito vezes sem conta pelas mesmas mãos representam aquilo que muitos vão deixar morrer. depois, alguns que cozinham, reclamam estes sabores como "únicos". aquilo que para os rostos cansados de gente que acorda ainda com o sol e com este se deita é hoje mesmo um luxo. conversava recentemente com uma senhora que me falava da salga do peixe que ainda fazia porque o frigorífico "não dá sabor, menino...!" é comum ver nestes talhos locais a carne em sal. e os toucinhos ou carnes fumadas deixadas por lá para os "estrangeiros" comprarem porque por ali, naquele tempo que é mesmo outro, tudo ainda se sabe fazer. e tudo se faz ainda com os rituais compostos de uma dedicação que é exigida também a quem cozinha com alguma verdade. são esses saberes que representam aquilo que hoje sabemos que são os nossos sabores de origem. que nos definem. e são silenciosos. há, nesses espaços esquecidos, nessas casas abandonadas ou fechadas algo de tão silencioso como de belo. é parar e tomar um café enquanto se vê o orvalho a evaporar e perceber que ali, naquele momento, nada mais há do que a vontade de conservar o que nos resta de sanidade individual e colectiva. a cozinha portuguesa já não se veste desta verdade. as estrelas fazem "ares" de coisas que já nem conhecem. ou que ao conhecerem transforma para o presente modernidade destruindo esse silêncio que impera, esse tempo sem espaço que se mantém depois de lá passarem e roubarem o que resta de uma memória imperial. esse império do tempo conservado. da cozinha como reserva da condição social e histórica. quando faço as minhas paragens para falar com esta gente respeito cada palavra que me entregam como um tesouro único que um dia já ninguém saberá do que se fala. de como se faz ou fez. é por isso que pergunto, que quero saber, que desejo guardar e repetir tal como é. sem interpretações, desconstruções ou coisas que tais. há na nobreza desta cozinha tudo o que é preciso e nada mais do que o somatório de todos os mundos antes de mim...

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