13/02/17

... tão simples que ...


...«abominável coisa é o bom êxito, seja dito de passagem. a sua falsa parecença com o merecimento ilude os homens. para o vulgo, o bom sucesso equivale à supremacia. a vítima dos logros do triunfo (...) é a história.»...
victor hugo

... chegará o dia em que será preciso recordar a um certo tipo de chefes o sabor de um pão quente feito em forno a lenha com uma manteiga caseira a derreter sobre o seu miolo. haverá um tempo em que aquele refogado simples será o segredo dos deuses de muito poucos. porque esta cozinha habitada por gestos que cabem na vã-glória dos instantes é habitada por um único e imenso elemento mortal. é de um tempo. deste tempo. e o correr dos tempos é sempre mais forte do que vontade ou tentativa dos homens o segurarem. ou fazerem dele o que quererem. o devir histórico é um imenso turbilhão que não nos permite ser maiores ou menores do que aquele tempo em que estamos. somos memórias. e somos presente. não definimos nada. usamos o que nos foi dado como saber aprendido. e custa-me. custa-me ver e sentir que, na impecável limpeza das bancadas dos restaurantes de renome falte esse encanto da descoberta. da viagem que se faz. dos sabores que só as mãos experientes sabem repetir. vamos até lá. roubam-se as ideias. recriam-se em pratos de aromas, memórias e experiências. mas não se consegue lá colocar o sabor. aquele sabor. puro. que é colhido no momento em que se saboreia uma carne de fumeiro no seu lugar ancestral. em que se come um peixe grelhado com o mar à vista. a cozinha é a arte de criar fantasmas, li uma vez. estes que nos assombram quando tentamos fazer uma homenagem recriada de qualquer coisa. as coisas são o que são. serão depois de nós passarmos por elas. a mim não me peçam para criar em cima do que sei que tem um valor maior do que eu. sei que o meu caminho e esta viagem é só uma. de procura constante. de aprendizagem. de reconhecimento. de tentar perceber como é que a cozinha consegue o que mais nada consegue. por isso procuro. vou por estradas que ninguém faz. falo com gente que a maioria dos chefes ilustres nem ouviriam. aquelas que fazem, sem receita para ler, as coisas que eles dizem recriar. quero aprender a fazer. e o seu sabor. porque chegará o dia em que delas só teremos memórias. e fantasmas...