25/07/18

... fora do tempo...


«...os seres não cessam de mudar de lugar em relação a nós. na marcha insensível mas eterna do mundo, nós consideramo-los como imóveis num instante de visão, demasiado breve para que seja percebido o movimento que os arrasta. mas basta escolher na nossa memória duas imagens suas, tomadas em instantes diferentes, bastante próximos no entanto para que eles não tenham mudado em si mesmo, pelo menos sensivelmente, e a diferença das duas imagens mede a deslocação que eles operavam em relação a nós...»
marcel proust

... às vezes há uma solidão maior. quando a cozinha se cala. quando só se ouve o som de cada tacho e das máquinas. e nós, perdidos ali, no meio de tudo. sem esperança. sem sonhos. sem alegria. revestidos de uma profunda tristeza. sós. a sós. entre o medo e o erro. entre a fuga e o abismo. são instantes, seguidos, que nos absorvem. depois vem um sabor, um cheiro, uma prova feita em modo automático, que nos salva. que nos leva ao colo de alguém que de nós cuidou. é um gesto de salvação no meio de tudo o resto. sem isso, a forma estranha de estar ali. no meio de nada como se tudo fosse apenas um lugar onde se está de passagem. respira-se fundo. é um trabalho. é um acto de transformação de algo como qualquer outro. o labor, feito de forma mecânica, porque tem que ser feito. respira-se. trava-se a dor no corpo com um pensamento de outro tempo, de outro lugar. julga-se um castigo merecido. uma penitência. como um calvário que é preciso fazer. maltrata-se o corpo para não desgastar mais a alma. a dor ajuda a libertar a razão. volta o silêncio que tudo absorve. é interrompido por algo que vem de fora. uma conversa breve. já pouco mais há para viver. faz-se tudo porque sim. só porque é preciso. no final, tudo confecionado, coloca-se num prato, para sair para o cliente que será sempre o primeiro. que está sempre primeiro. percebe-se que tudo isto é como um teatro. não uma peça, mas o edifício em si. com o esplendor da sala e a negritude dos bastidores. uma ilusão. fecha-se os olhos e respira-se. faz-se a viagem até um quadro visto num museu, um traço de um pintor, uma descrição de um texto escrito pela mestria de um tempo em que a palavra tinha beleza. coloca-se isso no prato. procura-se a salvação pelo belo. o tal belo que é a razão de tudo. até do silêncio. do próprio silêncio habitado. vestido da mais brutal forma de tristeza. aquela que tem pele de saudade. de tudo isto é feito um cozinheiro, também. mesmo que, feito palhaço rico, sorria e agite tudo num malabarismo sem fim e que ninguém alguma vez pense em perguntar se está bem ou como se sente. é o sorriso que vale. como o silêncio. o que fica...

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