03/11/14

... doce memória ...


"o efeito da memória é levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam connosco."
p. antónio vieira 

... hoje a aula de pastelaria foi um mundo para mim. inteiro em poucas horas. porque me trouxe uma saudade sem fim. imensa, grande demais para conter no peito. e se desfez numa alegria que coisa nenhuma pode saber como um sabor recordado em ternura. o chefe disse: vamos fazer massa de fartos. sou sincero, nem nunca tinha ouvido tal nome. fartos. gente farta de tudo sim. mas tudo o resto, a massa de tal nome, nunca. até que o mesmo chefe, homem que respeito imensamente pela dedicação e sabedoria, disse: massa choux. e fui atirado para aquela memória. eram o sonhos e os "choux's" como ela dizia. a minha tia silvia. e tudo tinha um segredo como ela dizia. o recipiente de inox, a colher de pau gasta na ponta, o repouso da massa que ela tanto me dizia que tinha que descansar. e os ovos, batidos dois a dois. e depois era o bater a massa. sempre para o mesmo lado. energicamente. mas não era isso. era ver o fogão branco e recordar os cabelos brancos dela também. mais tarde, muito mais tarde. mas era a ternura daquilo tudo. feito uma ou outra vez num ano. os sonhos, todos os natais. os "choux's" eram quando era para uma coisa especial. recheados com um creme de camarão. nunca saberei explicar isto. aquele sabor. aquele imenso sabor único. e de como a vida, tantos anos depois de tudo isto, me levou a estar ali e ver a massa crescer da mesma forma, com o mesmo sabor, sob a orientação das mãos de um mestre que desenhou no prato aquela memória que desconhecia que eu tinha. que chegou na primeira degustação da iguaria feita em jeito de aprendizagens. nunca farei nada parecido com o que a minha tia fez para mim. porque um sabor assim não é um doce, nem uma refeição. é uma dádiva. uma memória que me descreve e faz ser quem sou, como sou. e isso é tudo aquilo que me faz estar a aprender tudo isto. porque sei que nada mais tenho para dar a ninguém que não seja só um simples sabor. nem que seja só isso, gostava de poder oferecer, um dia, como recebi. e soube a vida, mais do que doce. e ainda bem...

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