06/04/15

... um sabor imenso ...


“i can’t stand people who do not take food seriously.” 
oscar wilde

... estou um profundo descrente. perdido o deslumbre fica pouco mais do que uma réstia inglória de esperança. em tudo. é por isso que, ao ver o nome da casa de gelados que conhecida desde pequenino, pensei logo: venderam o nome e pronto. vai ser tipo portugália ou santini. vou entrar e serei atendido por uma menina que nada sabe das vezes que desci o corrimão do antigo centro de comercial que foi sendo alisado pela custa de muitos calções rasgados. pensei logo na desilusão de provar um sabor de "plástico" em que teria sido transformado algo que me enche ainda a memória como das coisas melhores que o tempo das descobertas permite fazer ainda com cobertura de uma inocência que não regressa nunca mais. entrei, a medo. o espaço é "moderno". com "design". o antigo era antigo. sem design. só sabor. e para minha surpresa lá estava o "senhor". o "velhote". agora, aos meus olhos, um mestre na arte de fazer gelados. a conversa começou pela ideia que pensava que "tinham acabado". o que acabou foi o centro comercial. já só lá estávamos "nós". e com isto empurrou-me para a história. com a referência aos calções. vim para cá em mil novecentos e setenta e cinco. parámos uns anos. ainda tem o sotaque. ainda resta ali qualquer coisa de diferente. uma bola de gelado. em copo. pedi. já sem medo porque as mãos eram as dele. descrente já ai a pensar que quando ele partir vai tudo ser vendido. passo para a "montra" dos gelados. os clássicos. e depois as "experiências". cresci com aqueles sabores a serem experimentados. lembro-me de como era a coisa feita. comprávamos uma ou duas bolas de gelado dos "normais". chocolate com nata ou morango. e depois dizia o "velhote": vá, levem uma bola deste para experimentar. e depois digam se acham bom. era sempre ou quase sempre assim. dizíamos, o grupo. o bando, com que ia sempre lá comer um gelado ao fim da tarde no verão depois das aulas. ainda me lembro de uma dessas experiências: gelado de calipo de limão. não. não era isso. era mesmo uma bola de gelado com o sabor do calipo de limão. muito, mas muito melhor. isso ou o de pistache que acabou por ficar na "ementa". olhei. queria aqueles de "experimentação". kinder bueno. é isso. gelado de qualquer coisa impossível. meti conversa com o "rapaz" que atendia do outro lado. descrente, lá rematei: você não deve ser desse tempo mas eu comi muito do de morango. meia dúzia de palavras e lá foi nascendo a conversa. era filho do velhote. aprendeu tudo com ele. será ele a continuar a casa. e lá disse eu em forma de desafio que se dizia sempre: para mim vocês sempre foram muito melhores do que a santini. e eram. e são. há uma grande diferença. é que podemos provar antes de comprar. e lá veio a colher pequena com um bocadinho para "provar este". mas há mais duas coisas que nos separam: os nossos gelados estão à vista e nunca somos capazes de fazer o gelado de morango com o mesmo sabor. porque os morangos são, verdadeiramente, diferentes de dia para dia. fechei os olhos por um segundo. percebi que nem tudo estava perdido. chegou-me o desejado copo com uma bola de gelado. daquele gelado. daquilo que para mim sempre foi e sempre será o "verdadeiro" gelado. provei. e qual avassalador tormenta de memórias tudo regressou ao tempo em que devia ter sido feito. estava lá tudo. igual. perfeito. sem tirar nem pôr nada. tudo, intocável. de uma beleza e de um sabor inconfundível. tchipepa. chama-se a casa de gelados em cascais. e o gelado. é nesta essência que reside a beleza da cozinha. e fazer as coisas assim já é para mãos de mestres. ou para quem não perdeu a identidade. é um sabor imenso. aquele. é o gelado. somente...

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