26/03/15

... cozinha: lugar de vida ...


"...mas só há um mundo. a felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. são inseparáveis. o erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. “acho que tudo está bem”, diz Édipo e essa frase é sagrada. ressoa no universo altivo e limitado do homem. ensina que nem tudo está perdido, que nem tudo foi esgotado. expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores inúteis..."
camus

... e depois, de sentir a vontade de parar toda a aventura, chega a cozinha. quem ensina mostra mestria. envolve tudo com histórias. acredita e confia. nada há de mais motivador do que sentir confiança. que alguém espera de nós aquilo que podemos ser capazes de fazer. o hábito faz o monge. os processos ganham forma de rotina. começa a entrar tudo no corpo e nos gestos. sabemos e planeamos. pensamos em conjunto, em grupo, antes de fazer o que quer que seja. depois é deixar as mãos fazerem. recordamos a memória. e quando nos dão uma receita, é a identidade que procuramos. criar algo que fique. só isto. fique um pouco mais do que tudo aquilo que corre e passa no tempo que se consome cada vez mais em instantes. ouvimos o chefe dar os parabéns. dizer que as coisas correram bem, com erros como é humanamente natural para quem aprende esta coisa da cozinha, mas que foi tudo entrando no seu caminho. volto à identidade. "são vocês a cozinhar hoje?" é como um reconhecimento. não é preciso mais. é também, o esperar constante pelo sabor certo. o cansaço transforma-se em hábito. é muito grande, mas ali, quando quem ensina confia, transforma-se em vontade. mesmo que o dia tenha mais hora do que o corpo merece. desconfia-se da receita da pizza mas afinal era errado desconfiar. acertam-se temperos. vai-se rindo pelo meio. passa a haver tempo para fazer as coisas bem porque os procedimentos simples já estão no sangue, na vida em cada um de nós que em grupo, cozinha para servir bem. bom. e bem. trocam-se ideias. de igual para igual. ouve-se. diz-se. no fim faz-se o balanço. é raro na vida tudo isto se resumir a poucas horas. é que a cozinha é um lugar de vida inesperadamente rápido. pensar, fazer, repensar, refazer, melhorar, e voltar a pensar. tudo num dia. ou várias vezes num dia. regresso, no fim deste tempo à identidade. e penso mesmo que a cultura é um bem essencial para quem quer ser e fazer diferente em cozinha. lobo antunes, o escritor, dizia que é tão saber fazer bons pastéis de bacalhau como ter lido os lusíadas. eu diria que para sentir plenamente aquilo que se faz na cozinha é preciso ter a identidade dos sabores originais na ponta da língua. um pastel de feijão é de uma certa forma. o melhor que comi. ou o tradicional, de torres vedras comido num fim de tarde de outono. saber o sabor das coisas. e quando a cozinha é a tradicional portuguesa isso tem um peso ainda maior. é a cultura, estúpido. seja lá o que isso for. o que importa, agora, é o que fazer com isto. com este caminho já feito e com isto que somos já na cozinha. do que já sei. o que já aprendi. o que fazer com isto? talvez só guardar. por enquanto. guardar e esperar o que virá depois de uma pausa breve. as forças, essas regressam enquanto o corpo não desistir. o resto? são só sabores, amizades, dedicação, brio e vontade. é por isso que a cozinha é um lugar, imenso, de vida...

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