21/07/15

... a cozinha dos outros ...


«corrigir. corrigir muito: anoto, risco, reescrevo, volto a riscar; a reescrever, às vezes; a escrever, por fim. […] esboço geralmente um plano de trabalho; e, geralmente não o cumpro. […] a inspiração? aqui para nós, trata-se de uma rapariga fascinante – mas caprichosa como o diabo.»
david mourão ferreira

... entrei sem dar por isso. olhei em volta. há uma grande diferença feita pela experiência aprendida. percebi a lógica de organização da cozinha. uma cozinha profissional não é como a cozinha de nossa casa. tudo tem o seu lugar. uma ordem natural dada por que a habita todos os dias. tem que ser prática. eficiente. simples. olhei em volta. era a cozinha dos outros. daqueles que lá estavam e vão estar depois de eu passar por lá num tempo tão breve que será esquecido tão simplesmente como começou. as coisas, essas, dispostas em harmonia com a utilidade estavam por mim reconhecidas. por isso, tudo é mais fácil. cozinhar é a arte do impossível. sempre. do imprevisto, quase sempre. estar numa cozinha profissional tem coisas destas misturadas à velocidade de cem mil segundos num minuto. é preciso encontrar o nosso lugar. "qual é o teu lugar?", a pergunta feita pelo chefe determinou tudo. ensinou-me. fez-me pensar. "encontrar o lugar". é isso que tenho feito com este caminho. nunca tive esse lugar em espaço ou tempo algum. das músicas que mais gosto retiro a frase que me segue "i have got to find the river" e assim é sempre. devia ser. devia ter sido. agora o tempo é outro. cozinhar é um exercício doloroso. de constante dedicação. retira do corpo, pelos gestos mais do que necessários e o desejo constante de servir, de saber, de estar tudo bem, muito mais do que dá. é um acto silencioso. de eco. como se as coisas fossem aparecer na mesa por obra de qualquer mágico que ninguém quer ver. ninguém quer saber como foi feito, só depois de provar. só depois de estar bom, de procurar guardar e levar o segredo para replicar sempre que o desejo aparecer. mas nem isso, nem essa secreta vontade faz alguém abrir a porta da cozinha para espreitar. por detrás do palco tudo é mais cinzento. sem a beleza do fim de tarde visto pela janela ou o espanto de um prato que surpreende pela cor. estar nestes bastidores é o meu lugar. a cozinha é o meu lugar. estranhamente, mas é. resta aprender. neste tempo curto que me resta, aprender. aprender tudo o que é possível. não para replicar. mas para criar. para perceber. para fazer as coisas com razão. sabendo o que se está a fazer. e como se está a fazer cada coisa. mas mais do que isso, o que se está a servir. falta cultura na cozinha. essa. a da lógica. do saber das coisas. ainda bem que nesta, que agora já começa a ser a minha cozinha, sei cada coisa, percebo a sua razão. o seu lugar...

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