08/07/15

... faz falta cozinhar ...


«...quem em nós falaria voluntariamente da tristeza e do temor, se fôssemos obrigados a entristecer-nos e a temer, sempre que falamos de tristeza ou temor? contudo, não os traríamos à conversa se não encontrássemos na nossa memória, não só os sons destas palavras, conforme às imagens gravadas em nós pelos sentimentos corporais, mas também a noção desses mesmos sentimentos. as noções não as alcançamos por nenhuma porta da carne, mas foi o espírito que, pela experiência das próprias emoções, as sentiu e confiou à memória; ou então foi a própria memória que as reteve sem que ninguém lhas entregasse...»
santo agostinho

... não consigo esquecer os rasgos na pele. do sol. da vida. aquela mulher de mãos grandes demais. toda ela era feita só daquelas mãos. olhou para mim quando me sentei. vi o arrastar do corpo. lembro-me disso. nunca o esquecerei. era sofrido, o movimento. o espaço acompanhava. era uma sala vazia de qualquer beleza. as mesas de metal antigo, de tubos que se cruzavam em decadência. o papel sobre as mesas. o cesto do pão feito de plástico. os talheres riscados. lá fora, o barulho era imenso. estacionado logo ao lado estava um tractor. ferrugento do ar do mar. batido. tão gasto como as mãos daquela mulher. homens, em grupo, falavam do dia. do mar que não perdoa. do peixe que já não há. vendiam chocos apanhados naquela manhã. um cão fitava-os. esperava uma festa. na sala, esperei. chegou a carta. peixe do dia. nunca é fácil perguntar pelas coisas antigas. a cozinha portuguesa perdeu-se em polvo à lagareiro e doces da casa. é isso repetido de norte a sul do país. depois, há quem faça tudo o resto. mas como dizem: "por encomenda". é preciso encomendar o que é nosso. o que é mesmo cozinha portuguesa tradicional. tudo o resto é porque "as pessoas gostam". pedem, dizem. a mulher chegou e perguntei pelas enguias fritas. as pessoas gostam. disse. meti conversa. expliquei que gostava de saber mais. de como era antigamente. "ó meu senhor, antigamente não havia nada. era tudo muito melhor. feito com água do mar. se quer comer isso tem que ser caldeirada. a gente daqui comia era peixe no caldo. depois chamaram caldeirada. vende, percebe?". percebo. "venha cá comigo". e lá fui. a "cozinha" era um lugar pequeno. um grito da janela. "ó ma'nel vai bucar um balde". era mesmo água do mar. as mãos trabalhavam a uma velocidade infinita. não pareciam as mesmas. eram de mulher, que alimenta. que fez aquilo vezes sem conta. que não pensa mas sabe fazer tudo aquilo como ninguém. "ser mulher de homem do mar não é fácil, sabe?". a conversa desfia-se com a mesma força com que amanhava o peixe e o cortava em postas. a panela era antiga. "mas qual azeite?" vinho sim, do bom que do mau não dá. tudo feito pelo sabor. pelo tempo de outras coisas. a comida portuguesa é triste e pobre. é por isso que é tão afastada desse lugar de requinte que é o restaurante. hoje, tudo sofisticado até ao limite possível. fecha-se a tampa da panela. tudo atado em panos. "para suar, como os homens no mar". para dar sal. ou tirar. para dar sabor. ou tempo. "ora prove lá". sabia a pesca. a gente do mar. a tudo e mais alguma coisa. cada peixe, seu sabor. cada tempo, cada onda. cada hora de cada dia, no mar. estava tudo ali. parecia impossível. tenho esse sabor há anos na boca. como ela o tinha nas mãos. para o repetir. mas esta não se vende. esta é para nós. esta é a típica. como se fazia. como se faz. ali, naquela lição que aprendi, percebi tudo isso. o que falta na mesa dos espaços que se dizem de cozinha portuguesa é mesmo isso. receitas, pratos, saberes e sabores de bom senso e bom gosto verdadeiramente feitos desta alma e desta força. perdemos isso. vamos no rumo das coisas iguais. e com isso, perdemos tudo. antes de avançarmos precisamos, definitivamente, de voltar atrás. porque sem essência não há cozinha. há outra coisa. cozinha é que não...

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