15/03/16

... cozinhar é oferecer ...


«... quantas vezes apostaste a tua vida?
apostei a minha vida mil vezes.
perdeste tudo?
sim, perdi sempre tudo...»
josé luís peixoto


... a minha cozinha tem uma janela de vidro. por ela consigo ver a sala. dificilmente. porque é coberta por uma rede escura que me impede de ver quem degusta o que faço. às vezes, muitas vezes, vou à porta. espreito. não conheço. não sei quem é. alguém, que almoça sozinho, sorri. volto e fecho a porta. cozinhar é oferecer bem-estar. paz. conforto. é sempre por e para os outros. nunca por nós, que ali, entre paredes, panelas, tachos e alimentos, fazemos o papel de alquimistas e tentamos dar o melhor sabor aos melhores produtos. é sempre imensamente desgastante. só por isso. porque, cada vez que confeccionamos qualquer coisa colocamos o melhor de nós, o melhor que sabemos ou procuramos saber, para que aquela refeição seja um momento bom. saboroso. alegre. feliz. transportamos as nossas memórias. parte da vida, parte do que podemos ter vivido e colocamos num prato. pode ser só isso mas é também isso tudo. rodeamos tudo de beleza. só o sabor não chega. é preciso encher tudo de beleza. porque esse é o gesto que cuida. que trava o correr do tempo. a beleza. que salva do corrupio dos hábitos. que trava o correr do tempo. no final, não vou espreitar mais nada. sento-me e descanso. coloquei tudo naquele momento em que se faz. depois, só quero que quem esteve a experimentar o que confeccionei vá para o mundo como se a rua que chega à porta da minha cozinha fosse um rio e cada pessoa fosse uma folha de árvore. que vá. que se deixe ir. como ali chegou. sem saber o que ia encontrar mas, que, ao chegar onde tiver que chegar, o acolham como eu faço ali. oferecendo o melhor, o conforto e o cuidado que faz de nós um bocadinho mais humanos...


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