03/03/15

... quanto cozinhar é um risco ...


... não se fazem as coisas assim. foi, talvez, o dia mais difícil que passei na cozinha até agora. difícil e desencantado. aprendi imenso. foi também, talvez o dia em que aprendi mais. no meio de tudo. entre tudo. e vi os outros. percebi os outros perante a diferença. foi-me apresentado um rapaz. dezoito anos. portador de deficiência mental. creio. tipo sindrome de down. pareceu-me. era preciso fazer o "acolhimento". não foi isso. não foi acolhimento. disse logo que sim. que ficaria a orientar a integração. dele, nada soube. só o sorriso. foi vestir-se. ajudei. comecei a perceber as limitações por estar atrapalhado com botões. muitos que uma jaleca vai tendo, mesmo no modelo mais simples. depois é toda a lógica de organização de um espaço que não é pensado para quem tem algumas limitações motoras que acompanham as mentais. escadas altas demais. espaços de circulação limitados. e a cozinha. pensei no que senti quando entrei ali pela primeira vez. era tudo agressivo. metálico. barulhento. percebi, nos olhos dele, que assim também era. muito mais quando tudo ganha uma velocidade maior do que imaginamos todos. olhei para ele. passei o dia com ele. tudo passou pela minha cabeça. estive sempre atento. fiz pausas. soube da namorada que dizia ter. senti que estava a ficar cansado. já não sabia o que fazer com ele, por ele. vim passear para a horta de flores e ervas aromáticas. vi que apanhou um flor para dar à tal namorada cujo nome não cessava de me dizer. ele fez-me olhar para a cozinha de outra forma. conseguiu tirar as folhas de várias alfaces. de tentar fazer um leite-creme. tentei que ele fosse seguindo tudo mesmo quando a ajuda era todo o trabalho que fazia com dedicação. fui buscar o que sabia. o que sei. a ciência ajudou-me. terminei exausto. pelas emoções. pelo dia. pelo que aprendi. aprendi que precisamos de estar preparados para acolher quem, com limitações, procura aprender na cozinha. que temos que ter um profundo respeito por isso. que as coisas não se fazem assim, nunca. mesmo que com isso tenha eu, aprendido tanto. a cozinha é um lugar mágico. mas é preciso saber encontrar a magia. e saber orientar quem dela precisa. talvez para a próxima seja assim. porque o pior que pode existir no dia de alguém que está na cozinha é não saber como fazer as coisas para acolher quem precisa de descobrir o óbvio para além do simples que elas podem revelar...

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