26/04/15

...a fábula da cozinha ...


"quando entrou na sala, todos continuavam sentados nos seus lugares. (…) a mulher do médico aproximou o copo dos lábios do rapazinho estrábico, disse, aqui tens a água, bebe devagar, devagar, saboreia, um copo de água é uma maravilha, não falava para ele, não falava para ninguém, simplesmente comunicava ao mundo a maravilha que é um copo de água. onde a encontraste, é água da chuva, perguntou o marido, não, é do autoclismo, e não tínhamos ainda um garrafão de água quando nos fomos daqui, perguntou ele de novo, a mulher exclamou, sim, como foi que não me lembrei, um garrafão que estava em meio e outro que nem encetado estava, oh que alegria, não bebas, não bebas mais, isto dizia-o ao rapaz, vamos todos beber água pura, ponho os nossos melhores copos na mesa e vamos beber água pura. agarrou desta vez na candeia e foi à cozinha, voltou com o garrafão, a luz entrava por ele, fazia cintilar a jóia que tinha dentro. colocou-o sobre a mesa, foi buscar os copos, os melhores que tinham, de cristal finíssimo, depois, lentamente, como se estivesse a oficiar um rito, encheu-os. no fim disse, bebamos. (…) procuraram e encontraram os copos, levantaram-nos tremendo. bebamos, repetiu a mulher do médico. no centro da mesa, a candeia era como um sol rodeado de astros brilhantes. quando os copos foram pousados, a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta estavam a chorar."
josé saramago, ensaio sobre a cegueira

... resta-me pouca esperança sobre as coisas do mundo. não acredito nas pessoas nem nos seus gestos.  nem em mim. não encontro beleza em coisa nenhuma. resta-me o sabor. às vezes dou por mim a pensar que esta aventura de aprender a criar na cozinha está ligado a essa busca. é de uma busca que se trata. chegar à cozinha sem ter nada para procurar não é coerente. quem vai para a cozinha vai sempre à procura de alguma coisa. é quase um desejo de salvação. nem que seja só para esquecer a loucura misturando-a com a dos outros. há nessa procura, nessa busca constante algo de imensamente cansativo. porque é preciso saber que não se sabe o que se procura. e que todo o prazer, na cozinha, é imensamente efémero. dura sempre só o tempo dos sentidos saberem o sabor das coisas. e depois, ter a certeza que, se um dia se encontrar esse algo que se procura, ter essa certeza sempre presente que recriar tal momento, tal encanto inicial do sabor encontrado será, quase, impossível. é nesta insanidade que habitam os sonhos. não se pode estar na cozinha sem o sonho. sem a capacidade de sonhar. de ver o que os outros não sabem. de ter o sabor imaginado que os outros ainda não sentiram. de procurar, sempre, isso que ninguém sabe que existe para além de tudo o que já se conhece. é talvez o impossível, mesmo, que se busca incessantemente. quase como se isso fosse o que mantém tudo num equilíbrio estranho mas constante. que obriga a não desistir de estar ali plenamente. às vezes dou por mim a pensar que nunca saberei o suficiente para reconhecer esse momento quando me for dado. a tristeza é sempre o lugar das sombras e sorrir tem pouco haver com tudo isto. talvez seja por isso que estou nesta aventura. numa réstia de esperança. nessa réstia de força para procurar até ao limite máximo da vontade, algo que me encante uma vez mais. nem que seja só por esses breves segundos em que a boca sabe o que o sabor é capaz de revelar por inteiro. um deslumbre. um imortal lugar de sonho. que seja assim. perseguir sempre isto. até ficar só. até ser noite muito mais tempo. mas encontrar. porque, na cozinha, procurar é sempre preciso. é a essência de tudo. ou, sem assim ser, não vale a pena tentar...

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