07/05/15

... sobreviver na cozinha ...


«...a nós ligam-nos o nosso passado e o nosso futuro. passamos quase todo o nosso tempo livre e também quanto do nosso tempo de trabalho a deixá-los subir e descer na balança. o que o futuro excede em dimensão, substitui o passado em peso, e no fim não se distinguem os dois, a meninice torna-se clara mais tarde, tal como é o futuro, e o fim do futuro já é de facto vivido em todos os nossos suspiros e assim se torna passado. assim quase se fecha este círculo em cujo rebordo andamos. bem, este círculo pertence-nos de facto, mas só nos pertence enquanto nos mantivermos nele; se nos afastarmos para o lado uma vez que seja, por distracção, por esquecimento, por susto, por espanto, por cansaço, eis que já o perdemos no espaço; até agora tínhamos tido o nariz metido na corrente do tempo, agora retrocedemos, ex-nadadores, caminhantes actuais, e estamos perdidos. estamos do lado de fora da lei, ninguém sabe disso, mas todos nos tratam de acordo com isso.»
kafka

... com a vida aprendi o silêncio. que é um espaço. que é um lugar de observação e de solidão. a cozinha não tem silêncios. é feita de ruído. e de equipas de trabalho. de troca constante de dúvidas e de certezas. ensinar a cozinhar exige essa partilha. entre o ruído. no meio de tudo. passar por cima de tudo isso para dizer como se podem fazer as coisas para além do que já as mãos sabem naturalmente criar. este tempo passado tem sido só feito disto. desta luta constante. desta batalha imensamente cansativa. tenho aprendido imensamente. muito mais do que alguma vez pensei. e aprendi uma coisa ainda mais importante. que esse silêncio que sempre cultivei tem um valor ainda maior. por momentos abri uma excepção nesse meu silêncio para abraçar esta aventura. percebi que com ele nada ganhei. pelo contrário. preciso dele, mais do que nunca. e a ele regressarei. o homem é lobo do homem, sei disso. sei ainda mais que a cozinha é um lugar de extremos. e de dádivas. julgamos todos, tudo depressa demais. tomamos partidos. achamos tudo muito bom ou muito mau. eu sou cinzento. sempre fui. sempre serei. e ao cinzento junto o opaco do silêncio, agora. só assim posso ver que o local onde aprendo a cozinhar retomou a distribuição das "sobras" a quem precisa. porque a fome é mais forte do que a falsa moralidade das regras de responsabilidade e do medo. só assim abracei a ideia de aprender com todos os chefes que ensinam tudo o que podem ensinar. ou só assim percebi a imensa riqueza de estar a cozinhar com gente de outras terras e de outros sabores gravados nas mãos e nas memórias. ou perceber que um grupo é sempre mais produtivo quando cada coisa é entregue e feita da confiança no trabalho a fazer sem o julgamento da pessoa que o faz. reservarei o resto desta aventura a esse silêncio e esse afastamento de que sou e serei sempre feito. só assim conseguirei não desistir. porque tudo o resto são as pessoas. e a cozinha e cozinhar tem um encanto para além disso. que passa por cima de tudo. como um tecido que tece a liberdade e a vida. e se faz, se desfaz, sem ser preciso mais nada. estar disponível para aprender. e nada mais. tudo o resto é, de facto, ilusório...

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