09/05/15

... saber um sabor ...


“...a inteligência também me diz, a seu modo, que este mundo é absurdo. por mais que o seu contrário, que é a razão cega, pretenda que tudo é claro, em vão espero provas, desejando, embora, que ela tivesse razão. (…) tudo o que se pode dizer é que esse mundo não é razoável em si mesmo. mas o que é absurdo é o confronto desse irracionalismo e desse desejo desvairado de clareza, cujo apelo ressoa no mais profundo do homem.”
camus

... parei e li. o artigo estava pregado na parede. adriá diz que a sua sorte foi nunca ter estudado numa escola de cozinha e por isso ter a liberdade criativa sem medos nem reservas. o local não é para leituras mas para destaques. ficou por ler com a calma necessária. há nisto muita publicidade. e muita beleza verdadeira. só é preciso saber onde começa uma e acaba a outra. a verdade é que o toque que introduziu na cozinha fez olhar para tudo de forma diferente. o que admiro mais não é o conseguido. é somente a liberdade criativa em estado quase puro. o questionar tudo. sempre. estar na cozinha onde se aprendem as regras para confecção de determinadas coisas é tão necessário como é necessário questionar sempre: será necessariamente assim? cozinhar só com técnica e pelo domínio da técnica só traz metade da beleza do sabor. o resultado pode ser muito bem "conseguido" mas muito pouco livre. o sabor exige liberdade. mas exige algo mais. experiência. agora que uma fase desta aventura está quase a terminar percebo que o tempo perdido sem pensar a cozinha e como quero que um dia possa definir a minha foi um tempo desperdiçado. ou talvez só tenha que fazer um esforço maior para pensar tudo o que ficou por pensar. a verdade é que, para se ser verdadeiramente experiente em cozinha não basta a prática. nem a técnica. nem a dedicação. faltará sempre algo se não houver conhecimento. reflexão. pensar nas razões de tantas correntes. da ideia da "terra à mesa" ou do toque "molecular". tudo se torna verdadeira vazio se for feito sem uma razão. deixei-me levar por isso. pelo correr dos dias e pelas coisas a fazer. não foi para isso que me aventurei neste duro e imenso processo de mudança de experiências pessoais e profissionais. foi para pensar tudo e encontrar um caminho. o cansaço e as forças falham sempre em algum momento. assim como a percepção do absurdo de tudo o que não é lógico. a cozinha tem uma lógica antiga. as técnicas são as mesmas desde que foram inventadas. resta saber dominar cada uma delas. o resto é mesmo esse misto de encanto e de saber. contrariar o absurdo para ganhar alguma clarividência. preciso disso. tudo o resto são coisas e o dia-a-dia que não me interessam. é preciso discutir e pensar a cozinha. o que é, o que foi, o que será. porque por muito que tente não encontro razão para mudar o que tem séculos de sabor gravado nem o contrário também. a inovação, o belo, o criar novas coisas com novos sabores, vivências que são espectáculos para os comensais. tudo tem o seu lugar. e hoje é preciso ver isso tudo. conhecer isso tudo. afasto-me por isso de tudo o que não for isso. saber fazer pensando. acho que, cada vez mais, é preciso levar isso para dentro de um espaço onde se aprende. onde se prepara para o futuro. e o futuro precisa de lógica no seu absurdo natural. nem que seja para salvar o sabor. os sabores...

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