10/05/15

... a fama na cozinha ...


«...um dos preceitos mais enraizados e mais geralmente admitidos é o de acreditar que os homens possuem em si qualidades imutáveis: há homens bons ou maus, inteligentes ou estúpidos, enérgicos ou apáticos, e por aí adiante. ora, os homens não são assim. podemos, apenas dizer que um homem é mais vezes bom que mau, mais vezes inteligente que estúpido, mais vezes enérgico que apático, ou o contrário; mas classificar um homem, como sempre fazemos, de bom ou inteligente e um outro de mau ou estúpido é um erro. também os rios, todos de água, são umas vezes mais estreitos, outros rápidos, outros largos ou calmos, transparentes ou frios, caudalosos ou tépidos. ora, os homens são como os rios. cada um traz consigo a semente de todas as qualidades humanas, de que revela, em certos passos, umas características, noutros, outras, chegando mesmo, em certas ocasiões, a mostrar-se sob uma forma completamente oposta à sua natureza íntima, que, não obstante, mantém...»

tolstoi

... cozinho sempre com uma tristeza nas mãos. foi a vida que me trouxe isso. sem procurar o brilho ou esta coisa moderna que não é mais do que a fama. acho que a cozinha portuguesa está numa encruzilhada estranha. por curioso que possa parecer falta uma revolução na cozinha portuguesa. profunda. mas identitária. não de modelo mas de resultado. não de forma mas de apresentação. a verdade é que tenho pensado muito nisto. a cozinha portuguesa é triste. não há nada de mal nisso. pelo contrário. até do outro lado do mundo vinicius dizia que é sempre preciso um pouco de tristeza. porque há uma libertação nesse estado de alma ao cozinhar. o pior é que o caminho que estamos a traçar é da individualização e personalização da cozinha em vez da coerência que uma (r)evolução precisa. ensinam que um dia poderá, quem agora está a aprender, ser um "grande" chefe. estreitam-se as visões nesse caminho. é o da fama. o do salve-se quem puder. como puder. ou simplesmente surge gravado na memória as palavras ditas do: ser activo. procurar oportunidades. infelizmente não sou deste tempo. nunca soube viver e não vai ser agora que vou aprender. muito menos saberei como fazer isso. porque me parece que a fama na cozinha é o mal que vai acabar por matar essa coisa essencial que é preciso redefinir. temos uma das melhores cozinhas do mundo. os outros também. mas a verdade é que nenhuma tem o fado que a nossa tem. nem a saudade. nem a conservação da memória histórica que a nossa tem. quarenta anos de uma ditadura e a falta de uma revolução na cozinha portuguesa conservaram essências que estamos a esquecer em detrimento do espectáculo da cozinha. servir para surpreender é importante. mas a surpresa vazia e feita de uma bolha de ar é o mais alto grau de egoísmo. não tenho forças nem saber. não sei como o fazer. talvez só pensar. mas a cozinha precisa de lógica e de identidade. estamos a perder isso com as estrelas que estamos a fazer nascer na cabeça de cada um dos que um dia serão cozinheiros num país onde comer é um acto de soberania individual e colectiva. as escolas e quem ensina devia pensar nisso. talvez ser mesmo a fonte dessa revolução já que o "estrelato" individual não permite mais do que a fama como último lugar de ilusão. a cozinha portuguesa exige o que sempre a definiu. abnegação, dedicação e respeito. é um lugar colectivo. sem lugar para estas coisas que são tudo menos a sua essência. formar quem cozinhe em portugal, quem respeite a razão de ser de termos uma das cozinhas mais belas e saborosas do mundo é perceber que não podemos correr todos e de todas as formas para esse lugar individual e vazio. nem de qualquer forma. falta perceber isto. porque falta esta mudança profunda na cozinha portuguesa para se afirmar no futuro. o seu passado é rico demais para se encontrar novas formas de fazer o que quer que seja ainda. a cozinha portuguesa é um lugar de anónimos. e ainda bem. foi por isso que se manteve inteira. até agora. até agora em que o discurso das estrelas chega à cozinha. sinais de um tempo. deste tempo que não sei viver. deve ser por isso. preciso de um mergulho profundo nesse mar de saberes anónimos para me refrescar desta corrente contínua de fama num tempo de ecos. estou mesmo a precisar disso. porque tudo o resto só me desilude. profundamente. e tenho pena da nossa cozinha, por isso mesmo...

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