11/05/15

... desalento no sabor ...


«...deu-se então em mim uma espécie de estalido. o panorama que se avistava daquele quarto provocava-me um sentimento de inquietação, uma apreensão que eu já conhecera. aquelas fachadas, aquela rua deserta, aquelas silhuetas de sentinela no crepúsculo perturbavam-me à maneira insidiosa de um perfume ou de uma canção outrora familiares. e tive a certeza de que muitas vezes, àquela mesma hora, ficava ali, imóvel, à espreita, sem fazer o mínimo gesto, sem ousar sequer acender a luz. quando tornei a entrar na sala, julguei que já não havia lá ninguém, mas afinal estava a dona da casa estendida no banco de veludo. dormia. aproximei-me silenciosamente e sentei-me na outra ponta do banco. uma bandeja com um bule e duas chávenas, no meio do tapete de lã branca. tossi um pouco. ela não acordou. então, deitei chá nas duas chávenas. estava frio...»

patrick modiano

... há uma desilusão cansada que se instala. quase como o cenário de um quadro que já conhecemos. quase como um pedaço de um texto que reconhecemos. é a esperteza. ou saber jogar com as coisas e como elas correm. precisava tanto que, neste último reduto de esperança, nada fosse como é agora. já nem sei a razão. há muito dei à esperança um lugar muito reduzido em mim. aceito tudo o que me é dado. nada mais. não espero nada de coisa nenhuma. nem de ninguém. mas observo. foi talvez a única coisa que ainda não perdi que verdadeiramente me defina ou saiba que resta em mim como essência. observo. a cozinha é um lugar de genuinidade. é por isso que aqueles que sabem não falam. fazem. deixam as mãos falarem em vez dos truques ilusórios que aparecem como grande formas de vender o vazio. a cozinha revela sempre o seu autor. e o que sabe. e o que não sabe. é quase como uma caligrafia no fim de uma vida. perceber isto é perceber que aprender a cozinhar exige a revelação. porque ninguém se pode esconder quando está a cozinhar. tudo aparecerá no final. seja bom ou mau. mais quando, numa cozinha um grupo cria em função de um desafio. aí não são só as mãos que falam. é a dedicação. o gesto simples. o querer fazer sem perguntar. o ajudar, sem dizer. é uma dádiva que se faz sem esperar reconhecimento porque, sem ela, o sabor ou a forma de tudo falhará no fim. a comida, ouvia hoje, serve para nutrir. em primeiro lugar para nutrir. cozinhar serve, em primeiro lugar, para fugir do mundo. mas ao fazer cada momento dessa fuga, sabemos que a revelação da fuga estará presente, todos os dias, na mesa. podem até não saber quem cozinha. mas uma parte, imensa, de quem faz tudo a pensar em tudo o que a vida lhe fez e faz, estará lá. são rasgos de fúria ou a calmaria de um sorriso. a vida afasta deste caminho quem nele merecia estar. às vezes é assim. guardei nas minhas mãos as de uma colega que hoje parou esta aventura para uma ainda maior. só pensei na injustiça face a outros. porque a dedicação e a consideração, a alma simples e o olhar ternurento, a bondade deviam ter outra recompensa. desejo que a vida lhe sorria. para o futuro. regresso ao pensamento limpo. amanhã cozinharei com desilusão e fúria. para com a vida. para com quem não percebe o privilégio que tem de ainda lhe ser dado mais esta oportunidade. mesmo que a escolha tenha sido feita por vontade própria e mesmo que tudo pareça tão pouco. que saiba a tudo isso. porque os sabores são todos, sempre, amargos ou doces, como a vida...

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