12/05/15

... refazer o que se sabe ...


...«toda a gente que eu conheço e que fala comigo 
nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho, 
nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida. 
 quem me dera ouvir de alguém a voz humana 
que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; 
que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! 
não, são todos o ideal, se os oiço e me falam. 
quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? 
ó príncipes, meus irmãos, arre, estou farto de semideuses! 
onde é que há gente no mundo?...»

fernando pessoa

... foram talvez as coisas que me ensinaram quando eu era pequeno. que se cumprimenta toda a gente. que os outros são tanto como nós. que devemos respeitar o que os outros sabem e como são. mesmo que não possamos compreender. a cozinha é um lugar de extremos. de exageros. de brutalidades. mas para quem deseja, honestamente, aprender é preciso uma coisa. aceitar refazer o que sabe. perceber que o que fez, o que provou, o que conhece, tem um lugar de referência. nunca de sobranceria ou supremacia. este acto simples alarga imensamente a capacidade de acolher novas experiências. há coisas que julgo saber fazer bem. nunca digo. peço que me expliquem. vejo técnicas. todas. formas de fazer. quantas mais, melhor. provo. nunca digo: já comi melhor. digo: está bom. ou pergunto: para que é. temos que ver o todo. perceber que o que pensamos pode não ser o que o outro tem em mente. a finalidade nem sempre é a mesma. hoje, num dia em que ia vestido de uma tristeza um pouco maior por perceber e sentir a injustiça do mundo e da vida, vi-me desafiado. nunca tinha feito coisa igual. percebi a técnica. gostei do sabor. sem mais nada. não precisava mexer em nada. nem mais, nem menos. na minha cabeça não estava a receita original que não conhecia. fiquei curioso para um dia a provar. o que estava na minha cabeça e ficou foi o processo que eu podia aplicar a tantas coisas mais. aprendi. porque não esperei nada mais que não fosse isso. aprender. é preciso aquilo a que modernamente se chama de "humildade" e que antigamente se chamava de "curiosidade". nunca perceberei quem tem certezas absolutas. trazer isso para a cozinha não faz qualquer sentido. a cozinha exige o divertimento da experiência. mesmo que tudo falhe é com isso que se aprende. porque se tentou. porque, para além de se ter tentado não se achou que se sabia. e com isto, o conhecimento cresce. percebo cada vez mais que quando esta aventura terminar terei o abismo de não saber o que fazer com isto. sinto que perdi as forças todas para entender a vida. sei ainda que não me resta muito mais do que pensar. pensar sempre. em silêncio. para não incomodar. e talvez, de tempos a tempos, cozinhar qualquer coisa que me lembre tudo aquilo que aceitei aprender neste pedaço de tempo em que me ensinaram tanto. tudo aquilo que deixei entrar em mim como saber e guardarei como memória. é talvez esta a maior de todas as belezas deste caminho de aprender a cozinhar com quem sabe...


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