08/04/15

... cozinhar e a televisão ...


... há uma brutalidade (de estar em estado natural ou em bruto) imensa em ver "desfazer" uma lampreia. ou em cortar um lombo de salmão. ou no acto simples de picar uma cebola. é tudo em bruto. a cozinha é feita disto. e ainda bem. lembra-nos dos nossos mais antigos instintos de sobrevivência. da rude natureza do ser humano quando chega ao acto mais necessário: o de se alimentar. depois podemos embelezar a coisa. rodar os sabores, brincar com o azeite e colocar lá um aroma de carvão. ou simplesmente perceber que a cor e o sabor podem jogar com os sentidos da mesma forma que jogamos com a sabedoria esperada de quem prova o que cozinhamos. é neste momento que percebemos que aprendemos algo novo. que deixámos já de cozinhar o óbvio. o simples. para começar a ser capaz de cozinhar para cento e tal na mesma velocidade com que o fazemos para trinta ou quarenta. que os procedimentos já entraram no corpo. que já não há medo de cortar cento e tal pedaços de peixe com o tempo a contar. percebemos que do animal vivo ou morto seremos capazes de tirar o que precisamos. e agradecemos a quem ensina por nos trazer até aqui. e esperamos agora qualquer coisa de estranho. este esperar. é como na televisão onde tudo parece tão limpo. e naquele lugar, tudo é de uma brutalidade imensa que é preciso retirar antes de ser servida. ninguém gosta da rudeza sofrida num prato. o pior é a construção prévia que alguns vão tendo que cozinhar é como num filme de deliciosa aparência para encantar tudo e todos. retirar a rudeza das coisas naturais é um trabalho desgastante. mais ainda o é quando aqueles que são servidos e alguns que cozinham acham que há uma "arte bela" nesta coisa de cozinhar. a beleza, já o escrevi aqui uma vez, está no sabor. e no prazer que deste deriva. e é nesse sabor que tem que estar toda essa magia. de retirar ao bruto tudo que é feio e colocar lá toda a dedicação e trabalho para deixar só o bom e o belo. aprender isto é perceber que é preciso fazer isto e sempre mais. até o corpo ganhar forma para o fazer naturalmente sem pensar muito nisso. e conseguir fazer tudo isto ao ritmo do empratamento de um prato por cada quinze segundos. é o corpo e a mente a esperar essa tal coisa que ninguém sabe o que é. mas que espero aprender. ou dominar. é talvez essa a esperança ainda por cumprir. mas para ser aprendida. sempre...

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