10/04/15

... isto já não é cozinhar ...


“...mas um velho d’aspeito venerando, 
que ficava nas praias, entre a gente, 
postos em nós os olhos, meneando
três vezes a cabeça, descontente, 
a voz pesada um pouco alevantando, 
que nós no mar ouvimos claramente,
 c’um saber só de experiências feito, 
tais palavras tirou do experto peito:
— “ó glória de mandar! 
ó vã cobiça
desta vaidade, a quem chamamos fama!
(...)”
lusíadas, luís vaz de camões 

... é desta amargura que habita em mim, talvez. ou da desilusão da vida. ou de estar a ficar velho. deve ser isso tudo junto. ou por ter mesmo lido os lusíadas e de citar mentalmente estes pedaços que acima recordo. é o "episódio" do velho do restelo. dizem até que estou resmungão. mas é que a cozinha não é isto que um dito congresso de cozinheiros tentou fazer mostrar. deve ser do tempo que vivemos, deste tempo líquido, destas modas que servem quem as sabe usar ou de ninguém pensar muito ou dedicar muito tempo a ver verdadeiramente a essência das coisas. deve ser disso. ou simplesmente este não é o meu tempo. acho mais que é isso. não sou deste tempo. nem destes modos. nem desta forma de ver o mundo. ou simplesmente, tento justificar assim, porque somos muitos e assim, quando se trabalha menos coisas e menos quantidades mais podem comer. mas deparo-me com a questão do elitismo do discurso. ou da irrealidade do mesmo. começo pelo princípio para não me perder. a cozinha portuguesa sempre foi para mim uma invenção do estado novo. tal como as aldeias, a exposição do "mundo português" ou a imagem de afonso henriques que todos temos (a do elmo e espada - que está na estátua em guimarães e no castelo de são jorge). esta invenção é simples. mas tem uma virtude. conservou durante um tempo longo, maior do que a maioria dos países da europa, uma certa forma de cozinhar. ligada à terra, aos costumes, aos produtos locais e a um modo de fazer que se enraizou pela tradição oral, principalmente, e pelo trabalho de quem fez essa recolha. a sua representação máxima foi o trabalho de maria de lourdes modesto. mas há aqui uma questão fundamental. é que cozinhar não era, nesse tempo, algo desligado da produção próxima e dos produtos "locais". essa era a sua essência. os tempos de vivemos são da plastificação das coisas. da massificação. do acesso. da industrialização. do "em série", para as "massas". o consumidor procura poupar tempo na refeição comum. guarda o ócio, quando tem acesso a ele, para a degustação. e paga por isso. paga pelas duas coisas. por ter transformado a refeição em fast food (não só a do conceito original mas todas as refeições em virtude do tempo de almoço ou jantar ter que ser "gerido") e por se ter afastado do "campo" e das coisas "naturais". ouvir um "chefe" de cozinha fascinado com os produtos de época que plantou no seu pedaço de terra e esperou ver crescer e vender isto como algo inovador ou de "excelência" revela-se um absurdo de todo o tamanho ao olhar da senhora maria que ainda planta umas couves no quintal. uma pseudo-moderna-civilidade transformou o alho-francês em packs de uma coisa cortada, lavada e pronta a consumir como se a terra fosse uma coisa absurda e estes fossem feitos em laboratório para consumo de alguém cuja origem é "in vitro". estou a exagerar. é verdade. é o lado de velho rabugento. a verdade é que a cozinha portuguesa não existe. nunca existiu. somos dos países mais antigos do mundo. somos também um espaço geográfico que foi historicamente ocupado por povos com diversas e imensamente ricas origens culturais e gastronómicas. o estado novo harmonizou tudo isso chamando-lhe origem. mas a verdade é que essa conservação de razão ficou por lá. mas agora pouco disso é essência do que é cozinhar. é claro que não podemos "comer" como se comia há uma dezena de anos atrás. nem é bom regressar ao tempo passado. não sou tão crítico assim. mas estamos a seguir um caminho estranho. sem pensar muito, sem a necessária reflexão, estamos a importar coisas e mais coisas. a fazer de uma viagem a um lado qualquer do mundo um motivo para vender um prato e com isso um restaurante. é tudo um espectáculo sem identidade. uma vã-cobiça. algo de imensamente estranho. é talvez por ser o tempo que já não me pertence. mas sinceramente acho que é outra coisa. que é a ausência de cultura. de saber. de referências. de identidade. e isso sim, assusta-me. porque isso não é cozinha. é enganar quem come. é vender a banha da cobra em forma de puré ou harmonização de kick de sabores (sim, ouvi isto). e isso não tem qualquer relação com a comida. ou com cozinhar. é de vã glória. ou de fama. falta cultura. muita mesma. e pior, falta história. e gastronomia. estamos a desbaratar algo de fabuloso. assusta-me isto. imensamente. porque isto já não é cozinhar. por muito "interessante" que possa parecer, nada disso é cozinha. é outra coisa. e quem ler o resto que falta do episódio que emoldura estas palavras perceberá o que é...

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