25/04/15

... identidade e cozinha ...


"... são pratos de todos os dias, com os quais se pode fazer muito com pouco. não cansam nem estão sujeitos a modas porque a sua função não é deslumbrarem, mas sim, estarem. estarem à nossa disposição para os confeccionarmos quando queremos, antes de tudo o mais, alimentarmo-nos. o primeiro objectivo de vida de um ser humano é comer para se manter vivo. depois entra o lado recreativo do prazer de comer, que também se encontra ao saborear robustas e infalíveis iguarias. algumas foram a base de sobrevivência de milhares de pessoas ao longo de séculos, por isso é melhor mantê-las por perto pois a vida é feita de ciclos..."
fortunato da câmara

... tenho sérias dificuldades em sacrificar um sabor. e um certo desgosto em ver o espectáculo em torno da cozinha como algo de "moderno". cozinhar sempre foi algo espectacular. sem precisar de adereços ou de adornos como hoje acontece. aprender a cozinhar profissionalmente tem muito que se lhe diga. envolve muito trabalho. envolve um grau de desgaste físico grande. envolve ainda um abdicar de tudo para aprender, verdadeiramente, o que se pode e como se pode cozinhar. é preciso experimentar. sempre. longe dos holofotes. longe do brilho desta cozinha que hoje é um circo. há numa composição de andrew lloyd webber uma expressão fabulosa: "razzle-dazzle" que descreve este show em que tudo se transforma quando o prato chega à mesa. de boçais comensais a pseudo-ilustres homens que degustam iguarias todos precisavam encontrar na cozinha alguém que soubesse o valor de uma refeição. deste "estar" à mesa que se vai perdendo cada vez mais. e quando, ao aprender, nos é dado um vislumbre desse espaço de inebriante processo de engano da alma, percebemos que somos de outro tempo e de outros modos que não estes, deste tempo em que habitamos. pensar nisto tudo é aprender. pensar isto tudo é perceber que há uma origem que poucos já querem saber ou ouvir falar. que as coisas não surgem no hoje, nem no agora, sem uma raiz. ir procurar essa raiz é, para mim, em cozinha, cada vez mais algo em que me quero concentrar. diria que é uma essência perdida. não lhe chamaria, como modernamente se faz, de autenticidade. chamo-lhe de essência. o que resta ainda depois de todos os adereços que foram colocados nesta coisa de cozinhar para muitos com o melhor sabor possível. isso sim é um processo de desconstrução. de procura. é uma viagem. sei que vou parar, muitas vezes, à terra ou ao mar. às mãos que envolvem os produtos. aos migrantes e aos que chegaram e deixaram só qualquer coisa de diferente. perceber a essência de cada receita é perceber a sua história. a pior coisa que existe ou pode existir na cozinha é uma iguaria cozinhada sem identidade. por repetição. ou por domínio de uma técnica sem lhe saber a razão. talvez perceber isto tenha sido algo de fabuloso. dirão, os homens deste tempo, que será uma marca a cultivar. para mim, neste momento, é só algo que me agarra a esta coisa da cozinha e lhe dá um verdadeiro sentido. e isso, quando cozinho, é tudo...

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