17/05/15

... abandono na cozinha ...


«...só passado um bom quarto de hora, quando os olhos se habituaram à meia treva, joão sem medo deu conta deste espectáculo na verdade surpreendente: as árvores espreguiçavam -se, enquanto os pássaros, em lugar de cantarem, abriam os bicos em bocejos melodiosos. ao mesmo tempo, alongadas na terra, com as cabecinhas de cores nos travesseiros das ervas, as flores ressonavam alto perfumes intensos. e as fontes embaladoras desdobravam o seu vagaroso sussurro de tédio dormente. o próprio joão sem medo começou a sentir um torpor de morte provisória a pesar -lhe nas pálpebras e a tolher-lhe os braços e as pernas. de tal forma que resolveu acordar -se com dois ou três gritos e insultos que vararam a floresta adormecida: – então aqui não vive ninguém? nem nereidas, nem faunos, nem gnomos, nem nada? foi para esta pasmaceira que eu escalei o muro, digam-me lá?...»
josé gomes ferrreira

... às vezes penso que fabulosas oportunidades vão tendo aqueles que chegaram cedo à cozinha. ao aprender a nobre arte de criar para dar a provar. se tivesse chegado antes de estar quebrado, partido, imperfeito demais para acolher tudo saberia que o lugar da imaginação tem, aqui, toda a sua potencialidade. criar qualquer coisa que nunca se fez pode ser o mais difícil de tudo quando se fala de cozinhar. é fácil seguir o que outros fizeram. replicar uma receita. dar um sentido, testar, experimentar, fazer e refazer um prato é das coisas mais desafiantes que existem. se no mundo tudo está inventado, na cozinha sente-se que, sabendo as bases muito bem, tudo está por inventar. o possível e o impossível. a combinação provável e a improvável. está tudo por criar. sempre. e isso é fascinante. isso é, talvez, onde reside a beleza de cada dia longo ao fim do qual se espera ter feito algo que nunca ninguém tinha feito. testar é mesmo preciso. ninguém vê isso no resultado final. mas há horas e horas de estudo. de erros. de tentativas falhadas. de pequenas conquistas que se suspendem. de ligações e memórias que se interligam. de conversas. de pedidos de ideias. de ajudas. no final, só resta o cozinheiro e a sua criação. frente a frente. como se um e o outro fossem complementares. é preciso saber explicar o que está ali. criado. porque não é natural perceber o que está na alma de uma confecção. é preciso saber explicar. a destruição de tudo acontece depois. na degustação. é destruído o produto. para deleite dos comensais. sem o peso das horas. vou ao encontro de allan poe. sempre tive esse espaço de alma maldito. e cada vez mais escuro ele está. porque é preciso perceber que, nem todos os que comem sabem comer. sabem ver e sentir o que comem. tudo isso se pode perder numa só garfada. o homem não foi criado para compreender o outro. é anti-natural essa condição de compreensão. cada vez mais tenho essa certeza. é por isso que o meu último refúgio é este do silêncio e solidão da cozinha. porque por mais que ninguém saiba ou sinta, ninguém dê valor ou saiba o real sentido de um sabor, é o caminho que se faz ao criar, em cozinha, que liberta. que salva. que permite dizer que é preciso continuar. mesmo que as árvores só se espreguicem e os passos sejam mais cansados do que nunca... 

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