14/05/15

... segredos na cozinha ...


... há nesta coisa de não contar e não partilhar o que se faz, gostava de fazer, pensa fazer, algo de pernicioso quando isso se passa na cozinha. é a mania estúpida do "o segredo é a alma do negócio". ou "isso tem um segredo qualquer". ao fim de nove ou dez horas. ao fim de doze ou quinze horas na cozinha, seguidas, isso passa. ou devia passar. mas não passa. apetece-me sempre gritar: é a alma e a experiência! o segredo. o resto é tudo para dizer. e digo. vou fazer isto e vou tentar fazer assim. e depois de tentar digo. fiz. assim. mas também fiz este atalho ou esta coisa que não devia ter feito mas fiz porque ganhei aqui o sabor que perdi ali. foram, hoje, por exemplo, três horas para fazer o meu primeiro gelado. mas não foi meu. foi só um gelado. só é uma forma de dizer. foi um gelado com o que ouvi de dez ou mais pessoas. cada passo que me disseram. cada dica. cada "truque". cada "segredo". mais o que li. e o que vi. e o que provei. cozinhar é isto. fiquei alegre com o resultado. estava "bom". precisava de trabalhar umas coisas no fim. devia ir a congelar. ou melhor, a esfriar um pouco mais. não teve tempo. foi comido em conversa. um litro. estava mais ou menos bom. não era meu. era a soma de todas as partes. e mais o que inventei. falta tanto disto. desta coisa de pensar em conjunto. quando me sentei um pouco para esperar a descida de temperatura dos oitenta e tal graus até aos quatro graus e pouco, conversei. há pessoas com quem é bom conversar. mesmo que vida me tenha ensinado a estar calado. sempre. de como podemos ser mais ou menos ricos só por vivermos as experiências que nos são dadas nesta vida. viver é estar. e deixar as coisas acontecerem e nós acontecermos com elas. nelas. envolvidos. não indo com a corrente. sendo a corrente. e voltar lá, de tempos a tempos, como memória. o gelado ia decrescendo de temperatura. ficaria ali muito mais horas. somos aquilo que deixamos que vida nos faça viver. e quando deixamos que a vida aconteça em nós. há nisto um misto de beleza e de dor. porque cada vivência dessas foi plena. ficou gravada na pele, nos gestos, na essência do que somos. e traz uma dor. sempre. porque caímos vezes demais por viver assim. as quedas, com a idade, doem mais. aprendemos a evitar cada uma delas. ou simplesmente deixamos de viver. fazer pela primeira vez um gelado simples de cacau deu nisto. não foi só um gelado. estava bom, mais ou menos. mas não ficou nem um pedaço para contar nenhuma história. essas estavam e estão todas contadas...

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