29/05/15

... às vezes, ao cozinhar ...


«...depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
olha-se para dentro e já pouco sobeja
pede-se o descanso, por curto que seja
apagam-se dúvidas num mar de cerveja
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar, sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida...»
sérgio godinho

... às vezes, sei que aprendi tarde a sobreviver. a viver, ainda não aprendi e penso que morrerei sem o saber fazer. às vezes, penso, ainda bem. ainda bem que não aprendi. a vida encarregou-se de me dar uma infância e juventude revestida de privilégios. não dos das riquezas dos deuses. dos simples. dos que fazem e definem a alma. o resto, quando cresci, aprendi a brusquidão. a dureza. a vida torna-se amarga porque é vida. porque é preciso ficar gravada na pele. tem que passar por nós, a certa altura. ouvi hoje chamar a isto, mundo. eu chamo-lhe mesmo vida. o bom e o mau. gravado. em nós. e quando chegamos a um tempo, nesta aventura, em que tudo o que fomos aprendendo é testado, isso revela-se. já uma vez o escrevi, aqui. o mundo é dos espertos. a cozinha é de quem sabe cozinhar. não há cábulas na cozinha que ensinem e coloquem num prato o saber de uma vida. nem o aprendido. nem o desejo de fazer o melhor que se sabe e pode. não há truques nem etapas que se possam queimar. ali, perante o desafio de criar algo, há só mesmo tudo o que se sabe e se é. e o que se deseja criar. e a dedicação que se coloca em cada prato. é curioso ver o caminho feito. individual e colectivo. que há quem tenha o brilho no olhar. e ainda bem. é dessas pessoas que a cozinha portuguesa precisa. as mesmas que, num fim de tarde, surgem do nada para ensinar como se faz cozinha japonesa a convite de uma das poucas pessoas que se importou verdadeiramente com quem está a fazer este caminho. no final fica sempre um duplo obrigado. por ter proporcionado. e por ter acreditado. aprender exige sempre um esforço acrescido. e esta recta final, ainda mais. o cansaço é maior do que nunca. o corpo, maltratado, dá de si. mas o desejo de fazer bem e bom é maior do que isso. a vida, a identidade que me resta, é definida por isso. até ao fim, as árvores morrem de pé. morto de cansaço, por dentro. mas de pé. porque a viagem, esta, essa, tem sido maior do que a vida, até. e ainda bem. porque sem isso a brusquidão da vida que me cerca não me permitiria ver mais do que o dia seguinte, depois do anterior que passou...



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