26/05/15

... estar presente ...


 «... o esquecimento não é só uma vis inertioe, como crêem os espíritos superfinos; antes é um poder activo, uma faculdade moderadora, à qual devemos o facto de que tudo quanto nos acontece na vida, tudo quanto absorvemos, se apresenta à nossa consciência durante o estado da «digestão» (que poderia chamar-se absorção física), do mesmo modo que o multíplice processo da assimiliação corporal tão pouco fatiga a consciencia. fechar de quando em quando as portas e janelas da consciência, permanecer insensível às ruidosas lutas do mundo subterrâneo dos nossos orgãos; fazer silêncio e tábua rasa da nossa consciência, a fim de que aí haja lugar para as funções mais nobres para governar, para rever, para pressentir (porque o nosso organismo é uma verdadeira oligarquia): eis aqui, repito, o ofício desta faculdade activa, desta vigilante guarda encarregada de manter a ordem física, a tranquilidade, a etiqueta. donde se coligue que nenhuma felicidade, nenhuma serenidade, nenhuma esperança, nenhum gozo presente poderiam existir sem a faculdade do esquecimento...»
 friedrich nietzsche

... há dias assim. em que o cansaço e o corpo dorido da doença que quer desaparecer mas não desaparece trazem as memórias. e são cinco minutos que me salvam. cinco minutos em que venho à porta e vejo pessoas que aprendi a respeitar muito pela dedicação e trabalho, pela amizade entre eles, a construírem barracas de madeira para um momento a ter lugar em breve. em que vejo a dedicação, a mesma, depois a construir um prato para surpreender os sentidos. são muito mais jovens do que eu. gosto deles. porque me fazem ver que o mundo não terá fim enquanto houver aquela vontade. e aquele brio. são cinco minutos, em que me sento e penso. gostava de surpreender um chefe com quem tenho aprendido imenso. gosto dele e de quem é connosco. do humor sempre presente. de brincar com os miúdos e com todos. do gesto que nunca esquece. ensinou-me a fazer um doce, uma vez. bebinka. pensei num gelado de maçã verde e lima para acompanhar. foi quase imediato. era o mínimo que podia fazer. arriscar. aprendi isso com ele. experimente. se não der, dá para outra coisa. mas experimente. tudo para um momento de confraternização organizado. porque alguém fazia anos. esse alguém nunca me deu aulas. mas com ele aprendi, já, muito. no dia do meu exame de pastelaria observou o que estava a fazer. no final disse-me: "já viram a vossa evolução?". ensinou-me com esta frase muito mais do que ele pode até imaginar. quando estamos a caminhar nunca olhamos para os pés. é um reflexo de protecção. podemos cair por não olhar para o caminho. ele fez-me olhar, por uns segundos, para os pés. e ver que sendo os mesmos dançam já de forma tão diferente. as mãos. as mesmas que agora cozinham com mais determinação. são só cinco minutos. cinco minutos que dão para ver que um chefe que sempre disse que sim ao que podia para ajudar, deixa um livro de receitas seu aberto na cozinha. convite à leitura. ao aprender. ao parar para espreitar. ao dizer que as certezas são sempre vãs na memória. o esquecimento é um lugar habitado por todos nós. são só cinco minutos. que limpam a tristeza. que mostram que a cozinha é um lugar de espanto. que esta viagem tem sido muito mais rica do que posso imaginar. e estando a terminar, por agora, que venha a memória e o esquecimento para ficar tudo por dizer e fazer, só mais uma vez...

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