10/06/15

... da cozinha portuguesa ...


«...enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? nunca pior auditório. ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. por esta causa não falarei hoje em céu nem inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins...»
padre antónio vieira

 ... às vezes tenho tantas saudades de tantas coisas ao mesmo tempo que parece que o ar que respiro não chega para alimentar os pensamentos. é por isso que dou por mim a pensar na cozinha que hoje queremos fazer parecer que é moderna e apelativa. sucedem-se os programas na televisão. o espectáculo em torno do cozinhar é demasiado grande para ser verdadeiro. não se acerta um tempero à primeira. nem um ponto. nem nada. estava a pensar nisto porque é preciso pensar a cozinha portuguesa. é o meu desafio nos próximos meses. e com isso preciso recuar no tempo. ter a memória das coisas. mundo. vida. sonho. quando tudo isso me falta, agora, é quando mais disso preciso para continuar esta demanda. sustenho as ideias por um momento. recordo uma aula de um professor que traz a vida para cada aula. foi um breve vídeo. sobre o sabor e o gosto. e outro texto trazido por outra professora. falava da cozinha portuguesa vista por uma visitante lá pelos anos de mil novecentos e noventa e sete. há uma coisa que só pode ser resumida assim. a nossa cozinha abraça. nenhuma como ela o faz. nós, quando cozinhamos aquilo que nos define é esse gesto. é para dar conforto. reconfortar. porque é o momento de regresso a casa. ou a celebração. ou simplesmente porque queremos afastar a tristeza de que somos feitos por breves instantes. de tão simples, isso como as técnicas que usamos, a nossa cozinha é de uma exigência extrema. quer, de quem confecciona, duas coisas essenciais: presença e atenção. cuidado. não se pode acelerar o que é tipicamente uma iguaria que precisa do seu tempo para ser preparada. uma sopa que fica ao lume uma manhã. uma chanfana que precisa descansar. um arroz de marisco que precisa "ganhar" caldo. nada disso se pode acelerar porque é contra a sua natureza. isso e cozinhar só por cozinhar. "faz-se aí qualquer coisa para acompanhar isso". isto não faz parte da cozinha portuguesa tradicional. é o contrário. "bom, bom para acompanhar isso é um arroz de feijão. mas bem puxado". é tão bom ver e  saber isto. que tudo tem o seu lugar. que tudo tem que estar bom. e tudo tem o seu valor. o seu lugar certo entre todas as coisas. tudo tem que reconfortar. porque é preciso forças para o regresso. ou para a vida. hoje que temos acesso a tudo à distância de um clic não pensamos em metade das coisas que colocamos num prato. achamos que por termos uma redução de um vinagre balsâmico de não sabemos bem de onde tudo fica melhor. recordo a conversa com um chefe sobre os "ratinhos". homens e mulheres das beiras que iam para o alentejo quando este iria ser o "celeiro de portugal", nos tempos de um estado dito novo, e regressavam com farinha de milho nos sacos que usavam como iguaria depois. precisamos saber tudo isto, outra vez. a falsa modernidade de que nos queremos cercar só nos afastam dos sabores únicos que temos para viver. é claro que não podemos cozinhar hoje como há quarenta anos. mas podemos preservar o que temos como identidade e memória. isso é uma riqueza única. a modernidade futura vai passar por aí. é quase como saber que nos livros haverá sempre algo mais do que numa rápida pesquisa no mundo virtual. é ter saudades de uma carne de porco "à mercês", quando havia uma feira e os meus pais me levavam e sabia que aquela iguaria servida numa frigideira de barro era motivo principal da visita. parto para esta descoberta de mente aberta. uma viagem que me levará não sei onde. como todas as outras. acima de tudo, espero encontrar a essência para aquela que quero que seja a minha cozinha. a que quero aprender. será, talvez, dos últimos desafios que farei por vontade própria. porque é sempre difícil ter toda a saudade e toda a tristeza no peito, constantemente. mas que seja uma descoberta. e uma certeza. a que o tempo e o modo são as coisas que fazem dos nossos sabores esses lugares únicos que iremos sempre revisitar... 

Sem comentários: