17/06/15

... da ignorância na cozinha ...


«... mas sede prudente também com os vossos iguais. não humilheis com as vossas virtudes. nunca falei de vós mesmos: ou vos gabaríeis, que é vaidade, ou vos vituperaríeis, que é estultícia. deixai antes que os outros vos descubram alguma pecha venial, que a inveja possa roer sem demasiado dano vosso. devereis ser de bastante e às vezes parecer de pouco. a avestruz não aspira a erguer-se nos ares, expondo-se a uma exemplar queda: deixa descobrir pouco a pouco a beleza das suas plumas. e sobretudo, se tiverdes paixões, não as ponhais à vista, por mais nobres que vos pareçam. não se deve consentir a todos o acesso ao nosso próprio coração. um silêncio cauto e prudente é o cofre da sensatez...»
umberto eco

... percebo o deslumbre daqueles que acham que a cozinha é criatividade em estado bruto. misturam-se umas coisas. uns sabores (muitas vezes bons) e a coisa está feita. decora-se. a coisa fica feita para ficar bonita. diferente. porque os olhos também comem. ver cozinhar quem tem o tempo nas mãos desfaz muito rapidamente tudo isso. a beleza está no gesto. demorado. com dedicação. com uma dedicação que já não existe. daquela, do tempo, dos construtores de catedrais. vivo no tempo do pré-fabricado a desejar fazer da cozinha que quero abraçar, essa do tempo das coisas sem tempo. estou quase sempre em contra ciclo. procuro, falo. pergunto. falam-me em "movimentos". agora a moda é do "campo para a mesa". como se fosse preciso perceber que a sustentabilidade assim o exige. ou que isso é, neste tempo plástico, o contra ciclo dentro do ciclo. iremos recuperar aos poucos fragmentos de coisas esquecidas, na cozinha. conhecer o que fazemos e como fazemos, por cá, é o meu ponto de partida. posso até ter toda a curiosidade do mundo para conhecer todas as cozinhas e todos os mundos fora deste nosso rectângulo. mas começar por aqui é uma exigência. batatas assadas na terra, arroz doce em forno de lenha, cabrito esfarrapado. coisas que são muito mais do que os produtos que se usam ou a criatividade que ser quer feita espectáculo. é uma essência qualquer. uma razão, maior. um sentido. que se está a perder. são conversas de horas com homens e mulheres de idade avançada no espaço em que viveram. são histórias que alguém tem que ouvir. e técnicas que alguém tem que conhecer. "para que não se percam". pedem. clamam. nunca ninguém vem perguntar como se faz. perguntam, no máximo, o que se usa. não é no que se usa que está a razão da cozinha, do resultado servido. é mesmo no lento e belo mover de mão. na espera das coisas no forno. dos cheiros que é preciso reconhecer. das cores dos caldos. tudo isso é de uma riqueza imensa. de uma identidade sem fim. escondida entre quatro paredes. ou no sussuro de uma aldeia em festa. "tem que provar isto". "mas eu queria era saber como se faz". ora "então sente-se ai." é sempre assim que começa. a conversa. essa nobre arte de ensinar quem quer ouvir. saber. aprender. porque saber cozinhar estas coisas antiga só preciso desse ingrediente secreto fabulosa a que se chama tempo...

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