"não
é verdade. a viagem não acaba nunca. só os viajantes acabam. e mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em
narrativa. quando o viajante se sentou na areia da praia e disse:
«não há mais que ver», sabia que não era assim. o fim de uma
viagem é apenas o começo de outra. é preciso ver o que não foi
visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira
no verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde
primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a
pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. é preciso
voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar
caminhos novos ao lado deles. é preciso recomeçar a viagem.
Sempre."
josé saramago, viagem a portugal
...a criação de uma sobremesa precisa do seu tempo. de um tempo
qualquer. a ideia de reconstruir doces tradicionais em forma de
gelado não é nova. nem sequer é, inovadora. mas há sempre um
caminho a fazer nestes momentos. identificar uma razão para se
tentar mudar. ou criar. ou recriar. a razão é sempre o mais
importante. ou será o sabor o mais importante? talvez seja isso que
lhe dá a razão. essa viagem necessária. tudo começa por onde tem
de começar. pelo conhecimento. pela experiência. três doces
tradicionais. três regiões. a ideia era meter um país num prato. numa sobremesa. num fim de refeição. era quase impossível. é impossível tal coisa. porque é sempre preciso a viagem. como se a
viagem fosse, em si mesmo, a busca que dá sabor. e dá. porque o
resto é a descoberta.primeiro, o pudim abade de priscos. pelo
deleite pessoal. pela textura única. pelo sabor que pode envolver
todos os outros. ser, a soma de todos os outros. o norte de portugal
tem um sabor a terra e a tempo. era preciso colocar isto no prato. num prato. porque nada há de mais importante do que essa memória e
essa certeza. a da terra que nos segura e do tempo que nos guia. muito ou pouco. mas a sua presença abre a forma como podia
transformar tudo em algo um pouco mais claro. depois o típico sabor
do pastel de santa clara. a abertura da estranheza. o lugar do
sagrado e do profano. uma relação entre o pecado e o que se torna
familiar. se o tempo e a terra nos ligam, o sagrado e o profano,
devoram-nos os pensamentos. fazem-nos desligar a razão para além do
que se prova. do que se come. a gula como pecado faz sentido quando
lhe juntamos um terceiro elemento. o terceiro: a encharcada. o sul
traz o sol, a luz e o desvario do sabor. como se fosse um banho onde
se tornam imersos os desejos. foram escolhas, como qualquer outras. todas elas de origem dita “conventual”. a mim, importa-me outra
coisa. A tradição. o sabor refeito que é preciso conhecer. trazer
para a mesa em portugal aquilo que temos de mais rico. o que fomos e
o que sabemos fazer. a questão era depois uma só. como conjugar
sabores tão ricos e tão doces. como conjugar tudo isto com um tempo
de turismo, de imediatismo e de frugalidade. como o fazer sem
desvirtuar a sua razão única: saciar o prazer? a sobremesa é
sempre esse momento. de prazer devoto. esperado. é assim porque é
assim. seja qual for a sua natureza ou a forma da refeição. os
comensais esperam sempre pelo deleite final. como se fosse um despir
de tudo o que ficou por dizer. por contar. por provar. e o fecho
perfeito ou imperfeito da companhia. da conversa. do estar pelo
estar. como transformar algo assim, invernoso, outonal, em algo
fresco, limpo, inquietante. que fosse, também, motivo de conversa. era
preciso regressar à infância. e pensar que num qualquer verão o
que se anseia sempre é por aquele gelado. um gelado. a frescura e a
cremosidade de um sabor solto. era então óbvio o caminho e foi o
que escolhi. transformar os três doces em três gelados. gelado de pudim abade de priscos; gelado de pastel de santa clara e gelado de encharcada. três gelados, três regiões. era, depois preciso dar
sustento a tudo isto. dar lógica, como sempre, como necessário. foi
preciso regressar ao gesto. comer é, em tudo, um gesto. e as mãos
são o que libertam o gesto. queria algo que fosse possível comer
com as mãos. sem mais nada. que fosse um gesto dos comensais. mesmo
que fosse passível de ser partilhado em jeito de brincadeira. como
era feito na infância. como se faz com um sabor que se descobre. foi
por isso óbvia a escolha de um cone para suporte dos gelados. fazia
sentido trazer para a mesa aquele lugar de areia, de praia, de sol,
de verão e de calor. são as memórias que nos fazem. é com elas
que fazemos também uma sobremesa que se quer rica para os sentidos. era só preciso uma coisa final. surpreender. em cada cone, um sabor. simples “bolacha americana” a lembrar aveiro. canela, a lembrar a
massa das queijadas. e amêndoa, para recordar os pasteis que ficaram
de fora desta experiência. estava composta a pauta. faltava
completar os movimentos. dar a frescura e o ácido. dar uma coisa
diferente para além deste trio simples de vivências que agora se
articulavam. dar o ácido de um limão, a lembrar a limonada de fim
de tarde quente. ou a laranja, de uma algarve cada vez mais perto. ou
a nêspera que cresce no jardim por estes dias de sol mais longo. era
só o toque em falta. o topo, a cobertura, a forma de levar ainda
mais longe a sobremesa que se criava. por fim, como se trata do fim
de uma degustação, que seja o vinho madeira a dar-lhe o toque que
limpa sabores entre descobertas. quase portugal inteiro num prato. faltava a história, pensei. faltava aquilo que tudo une. nada há
como mais físico do que entrar, em évora ou em beja numa igreja num
dia de verão imensamente quente. aquele fresco, aquele cheiro a
incenso. aquele cheiro a madeira viva. uma defumação. que liga tudo
enquanto se prova. se descobre. esta é a sobremesa criada. recriada. refeita. não desconstruída ou de vanguarda. só uma experiência. em si mesmo e para além disso. que seja boa. simples. imperfeita. que permita a linguagem dos deuses e dos homens. que seja viagem. feita e por fazer. que seja sempre um ponto de chegada. e de partida. que nunca cesse o desejo. nem o prazer. nem sacie ninguém. que seja
só uma sobremesa. sem mais nada...
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