18/06/15

... ensaio sobre uma sobremesa ...


"não é verdade. a viagem não acaba nunca. só os viajantes acabam. e mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: «não há mais que ver», sabia que não era assim. o fim de uma viagem é apenas o começo de outra. é preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. é preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. é preciso recomeçar a viagem. Sempre."

josé saramago, viagem a portugal


...a criação de uma sobremesa precisa do seu tempo. de um tempo qualquer. a ideia de reconstruir doces tradicionais em forma de gelado não é nova. nem sequer é, inovadora. mas há sempre um caminho a fazer nestes momentos. identificar uma razão para se tentar mudar. ou criar. ou recriar. a razão é sempre o mais importante. ou será o sabor o mais importante? talvez seja isso que lhe dá a razão. essa viagem necessária. tudo começa por onde tem de começar. pelo conhecimento. pela experiência. três doces tradicionais. três regiões. a ideia era meter um país num prato. numa sobremesa. num fim de refeição. era quase impossível. é impossível tal coisa. porque é sempre preciso a viagem. como se a viagem fosse, em si mesmo, a busca que dá sabor. e dá. porque o resto é a descoberta.primeiro, o pudim abade de priscos. pelo deleite pessoal. pela textura única. pelo sabor que pode envolver todos os outros. ser, a soma de todos os outros. o norte de portugal tem um sabor a terra e a tempo. era preciso colocar isto no prato. num prato. porque nada há de mais importante do que essa memória e essa certeza. a da terra que nos segura e do tempo que nos guia. muito ou pouco. mas a sua presença abre a forma como podia transformar tudo em algo um pouco mais claro. depois o típico sabor do pastel de santa clara. a abertura da estranheza. o lugar do sagrado e do profano. uma relação entre o pecado e o que se torna familiar. se o tempo e a terra nos ligam, o sagrado e o profano, devoram-nos os pensamentos. fazem-nos desligar a razão para além do que se prova. do que se come. a gula como pecado faz sentido quando lhe juntamos um terceiro elemento. o terceiro: a encharcada. o sul traz o sol, a luz e o desvario do sabor. como se fosse um banho onde se tornam imersos os desejos. foram escolhas, como qualquer outras. todas elas de origem dita “conventual”. a mim, importa-me outra coisa. A tradição. o sabor refeito que é preciso conhecer. trazer para a mesa em portugal aquilo que temos de mais rico. o que fomos e o que sabemos fazer. a questão era depois uma só. como conjugar sabores tão ricos e tão doces. como conjugar tudo isto com um tempo de turismo, de imediatismo e de frugalidade. como o fazer sem desvirtuar a sua razão única: saciar o prazer? a sobremesa é sempre esse momento. de prazer devoto. esperado. é assim porque é assim. seja qual for a sua natureza ou a forma da refeição. os comensais esperam sempre pelo deleite final. como se fosse um despir de tudo o que ficou por dizer. por contar. por provar. e o fecho perfeito ou imperfeito da companhia. da conversa. do estar pelo estar. como transformar algo assim, invernoso, outonal, em algo fresco, limpo, inquietante. que fosse, também, motivo de conversa. era preciso regressar à infância. e pensar que num qualquer verão o que se anseia sempre é por aquele gelado. um gelado. a frescura e a cremosidade de um sabor solto. era então óbvio o caminho e foi o que escolhi. transformar os três doces em três gelados. gelado de pudim abade de priscos; gelado de pastel de santa clara e gelado de encharcada. três gelados, três regiões. era, depois preciso dar sustento a tudo isto. dar lógica, como sempre, como necessário. foi preciso regressar ao gesto. comer é, em tudo, um gesto. e as mãos são o que libertam o gesto. queria algo que fosse possível comer com as mãos. sem mais nada. que fosse um gesto dos comensais. mesmo que fosse passível de ser partilhado em jeito de brincadeira. como era feito na infância. como se faz com um sabor que se descobre. foi por isso óbvia a escolha de um cone para suporte dos gelados. fazia sentido trazer para a mesa aquele lugar de areia, de praia, de sol, de verão e de calor. são as memórias que nos fazem. é com elas que fazemos também uma sobremesa que se quer rica para os sentidos. era só preciso uma coisa final. surpreender. em cada cone, um sabor. simples “bolacha americana” a lembrar aveiro. canela, a lembrar a massa das queijadas. e amêndoa, para recordar os pasteis que ficaram de fora desta experiência. estava composta a pauta. faltava completar os movimentos. dar a frescura e o ácido. dar uma coisa diferente para além deste trio simples de vivências que agora se articulavam. dar o ácido de um limão, a lembrar a limonada de fim de tarde quente. ou a laranja, de uma algarve cada vez mais perto. ou a nêspera que cresce no jardim por estes dias de sol mais longo. era só o toque em falta. o topo, a cobertura, a forma de levar ainda mais longe a sobremesa que se criava. por fim, como se trata do fim de uma degustação, que seja o vinho madeira a dar-lhe o toque que limpa sabores entre descobertas. quase portugal inteiro num prato. faltava a história, pensei. faltava aquilo que tudo une. nada há como mais físico do que entrar, em évora ou em beja numa igreja num dia de verão imensamente quente. aquele fresco, aquele cheiro a incenso. aquele cheiro a madeira viva. uma defumação. que liga tudo enquanto se prova. se descobre. esta é a sobremesa criada. recriada. refeita. não desconstruída ou de vanguarda. só uma experiência. em si mesmo e para além disso. que seja boa. simples. imperfeita. que permita a linguagem dos deuses e dos homens. que seja viagem. feita e por fazer. que seja sempre um ponto de chegada. e de partida. que nunca cesse o desejo. nem o prazer. nem sacie ninguém. que seja só uma sobremesa. sem mais nada...




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