29/06/15

... dessas coisas, destas coisas...


"...perante a estrutura ética, perante a estrutura cívica, perante a estrutura religiosa, perante a estrutura psicológica, perante a estrutura económica, procuramos muito mais a comodidade e a segurança do que a interrogação. Interrogação que é conhecimento, que é pôr em questão, que é imaginação e descoberta e que, com tudo isto, é caminho de verdade e liberdade...”  

antónio alçada baptista

... esquecemos a simplicidade dos sabores antigos. de quando não havia nada para além do tempo. o tempo, esse imenso senhor dos sabores e das coisas. dessas coisas doces. destas coisas feitas na cozinha de uns, para outros. num tempo perdido. sem nada. só com vontade. desejo e saber. começo por aqui uma viagem que me levará, nem sei bem onde. começo pelas bases. toda esta cozinha antiga, de sabores quase perdidos, é feita por bases de técnicas muito bem conseguidas. dominadas. e pela ausência de tudo. o nosso tempo é o contrário. é o tempo das coisas. das máquinas. do "acelerar" o processo. dos truques. das dicas. das coisas feitas por ser assim melhor e mais belo. mas aquele sabor, de uma coisa chamada "botelha em leite" feito por uma senhora com noventa e quatro anos sabia só a uma coisa. à dureza da vida. à privação. ao simples deleite necessário que uma coisa doce podia trazer em dias de festa. era abóbora menina desfiada e cozida em água com açúcar. depois, o leite. nada mais. sabia a bolacha-maria. e a tempo. a um tempo que já não existe. nem pode regressar. hoje já não temos colheres de pau, nem tachinhos decorados com flores em esmate. somos do tempo das coisas limpas. todas brancas. em inox. queremos replicar isso muito mais depressa. o segredo, destas receitas em que mergulho agora, é quase sempre só um. o tempo. demorado. longo. dedicado. o deixar ficar. "ó chefe, deixe ficar. deixe ficar isso aí para ganhar gosto". apurar. é quase sempre este o ritual. este e o das coisas feitas com orgulho. "isto só há aqui.". isto só se faz aqui. isto só se dá aqui. e ao provar consigo fazer a viagem até à sala, comum, com a terrina ao meio de onde todos retiravam a iguaria. "essa coisa do empratar é coisa moderna". antigamente ia tudo para a mesa, e o centro da mesa era o centro de tudo. para todos. esta origem do "comer" vem de longe. das casas romanas, dos deuses. dos espaços dos homens e dos espaços das mulheres. vem de longe e do deus hades. dos infernos dos fogos. do homem que está fora. da mulher que é quem abre a porta. dos lugares à mesa. tudo isso tem, nestes sabores perdidos uma razão de ser. os ovos que mostram riqueza. com ou sem ovos, o arroz doce. dizia-me um texto antigo: "com ou sem ovos dependia dos pedidos da capital no tempo da guerra. os senhores de lisboa levavam tudo. se se conseguia esconder era com ovos. caso contrário, era sem.". era só o arroz, a água, o açúcar mascavado e o forno de lenha. e esperar que pudessem os deuses ajudar a que tudo fosse bom, no final. é deste tempo e deste modo que a cozinha portuguesa é feita. a esquecida. a que não está nos restaurantes. a que é imensamente mais rica do que um polvo à lagareiro ou coisa que o valha. aquela em que agora me embrulho. para dela, tentar sair. no final, muito mais rico ou muito mais perdido... 

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