13/10/15

... cozinhar como uma conversa ...


"...na floresta de gribs, há um lugar a que chamam o canto dos oito caminhos; ninguém o encontra se não o procurar convenientemente, porque não figura indicação dele em nenhum dos mapas conhecidos. até o próprio nome parece uma contradição; pois como é que do encontro de oito caminhos pode resultar um canto; como é que a estrada real se pode conciliar com o retiro, e a senda espezinhada com o esconderijo? se o solitário foge da trivialidade, da que deve o nome ao encontro de três vias, como não há-de ele fugir do que resulta de uma dupla encruzilhada?..."
sören kierkegaard, o banquete

... não me peçam para repetir o que outros fazem. nem para cozinhar sem pensar. sem perceber. sem ter ou dar um sentido ao que há para confeccionar. de nada me incomoda cozinhar para alimentar ou cozinhar para deslumbrar. dividimos demais pela importância uma forma e a outra que não são mais do que uma em si mesma: cozinhar. mas cozinhar é dar sentido. dar um sentido para quem vai provar o prato. tenho lido e ouvido muita coisa. estudar é preciso quando queremos estar no cimo da onda que tentamos acompanhar. ver a "tendência". seguir ou não, por opção. perceber que as coisas todas são feitas de ciclos e que este, desta cozinha feita de espanto, terá o seu fim para outro caminho renascer. perceber que os criadores já falam em "origens" e "raízes" mesmo sem saber muito bem o que isso quer dizer. educar o sabor é um dever do cozinheiro que quer deslumbrar. isso devia ser ensinado nas escolas e nas cozinhas. uma pedagogia do sabor. antes de tudo. acima de tudo. porque é mesmo preciso pensar antes de fazer. perceber que hoje já não comemos o que comíamos há vinte ou trinta anos. simplesmente porque não há ou a sua natureza foi alterada para nos "agradar". perceber que temos mais técnica, mais tecnologia, mais conhecimento. a ciência explica o que nos falta perceber pelo fazer do dia-a-dia. ajuda nisso e nas misturas impossíveis. precisamos do belo porque é dos poucos momentos que temos para o apreciar e mesmo assim é tão efémero como o tempo útil de uma refeição. quem degusta vem do mundo e o mundo é brutal. ali, na mesa, tem que estar o último reduto de certeza que o mundo não é todo assim. pode ser belo e bom. confortante ou surpreendente. perceber que hoje o tempo e a vida é feitas destas coisas ajuda quem cozinha a saber o que oferecer a quem se senta numa sala onde lhe espera o desconhecido. os pratos, as "criações", são agora lugares de descanso. terão que o ser ainda mais no futuro. de fuga, de refúgio. a mesa precisa de uma centralidade esquecida. gostava de criar uma cozinha assim. de reencontrar esse lugar de encontro, de conversa, de afecto. de comentário para além do belo e do bom. ao ler, perceber, pensar, sei que caminho quero fazer. esse, de criar uma degustação conversada com a mesa como palco. nunca só uma prova. nunca só o efémero imediato do acto buçal de comer. muito mais do que isso. uma conversa. cozinhar assim tem que ser uma conversa. para ter sentido. para dar sentido. se assim for, tudo muito melhor...

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