24/10/15

... desmanchar ...


«...assim organizar a nossa vida que ela seja para os outros um mistério, que quem melhor nos conheça, apenas nos desconheça de mais perto que os outros. eu assim talhei a minha vida, quase que sem pensar nisso, mas tanta arte instintiva pus em fazê-lo que para mim próprio me tornei uma não de todo clara e nítida individualidade minha.»
fernando pessoa

... vinte minutos. desmanchar um borrego. aprender o que fazer com cada parte. isto é para assar. isto para grelhar. enrolado assim dá isto. cortado assim dá outra coisa que pode ser para fazer um prato que já ninguém sabe fazer porque já ninguém ensina "aqueles" cortes. vinte minutos. e ali percebi a mão segura do saber feito de experiência. ensina-se assim. de tão simples que é até parece fácil. eu, sinceramente, que já desisti da vida, restam-me estes momentos. estes e aqueles em que me é dada a oportunidade de pensar e procurar o que fazer com alguns produtos. mesmo que o deixe de fazer no contexto prático é com o estudo feito fora dos momentos em que é exigido que se crie algo em grupo que o faço. que experimento. o resto, são dias que passam já longe do encanto ou da ideia que é ali, entre iguais, que podemos explorar a arte de cozinhar para além dos seus limites. se pudesse e tivesse arte para tal escreveria um tratado que ligava o pensamento de kafta a thomas hobbes. o ser humano é, sem dúvida, lobo de si mesmo e perdido entre metamorfoses e labirintos que só o vão destruindo. a cozinha salva de tudo isto. ali são só produtos que falam com que os sabe ouvir. é no silêncio absoluto da pesquisa, do estudo, do trabalho, do experimentar que agora estou e estarei até fechar este tempo em que aprendi aquilo que nunca pensei. a tentar saber cozinhar. este tempo que resta devia ser de experimentação com apoio de quem está disponível para trocar ideias. não o é porque, de todo, todos temos a mesma visão do que deve ser este tempo ou o processo de aprender e ensinar. ou simplesmente porque a cozinha e a natureza humana chocam muitas vezes na ideia do que é o saber. o tal saber cozinhar que faz de cada instante e de cada criação uma conquista pessoal e única. enquanto assim for o espaço da cozinha não terá vida. será um deserto. mas isso é o que sempre foi. tudo e a vida também. por isso, reservo-me a esse momento, e essa coisa fora do tempo e do espaço em que terei que estar para cumprir um calendário. não deixarei de cozinhar e de aprender. de experimentar. e de tentar saber. mas isso agora reveste-se de uma sombra que só uma imensa luz que não vejo mais poderá destapar... 

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