12/11/15

... das coisas e dos modos ...



"... considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. não sei onde me levará, porque não sei nada. poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. não sou, porém, nem impaciente nem comum. deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero..." 
fernando pessoa 

 ... há modas. tempos. formas de saber as coisas. gerações. e coisas que passam. sabores que se perdem. cozinhar hoje é conservar tudo isso. ao cozinheiro devia ser exigido esse lugar de restauração. parece que tudo obriga a uma modernidade permanente, fluída, onde a memória é um ingrediente envolto em nevoeiro para ser vendido como "tradição" ou pelo menos como sabor seguro. não se aprende isto. ninguém ensina isto. isso vem com um olhar admirado sobre a realidade das coisas. a cozinha precisa desse espaço. e quem cozinha precisa de ter isso presente quando cria. quando lhe é exigido que transforme o real. o conhecido. o que já faz parte da memória colectiva. hoje, sentir isso é aprender. é até estar perto de compreender o presente. hoje, apresentamos a cozinha como lugar de espectáculo. de estrelato. de fama. mas a cozinha é tudo menos isso no correr dos dias e do trabalho. é esforço e conhecimento. e se a ideia da figura de quem cozinha como elemento central parece hoje ser uma evidência inquestionável a verdade é que todos pertencem a um devir maior do que eles mesmos. antes de nós, cozinham outros. depois de nós, outros vão cozinhar. outros vão conseguir aquilo que nós tentámos. e outros vão seguir passos que nós conseguimos abrir. as mãos vão-se somar. no sabor. na técnica. na forma de fazer as coisas que se conhecem ou se deram a conhecer. quem degusta, quem prova, quem come, sabe isto. sente isto. é o prazer de algo ser saboroso. algo que se leva à boca com expectativa e se revela como uma iguaria feita de tempo e da soma de todas as coisa seguras que faz, quem come, dizer: quero voltar. quero voltar a provar. a comer aquilo que se transformou em memória pessoal construída de tudo aquilo que faz de um alimento algo de fabuloso. isto não se ensina. é preciso perceber. mais do que perceber, é preciso compreender. isso faz tudo ter sentido. mais do que sentido: lógica. esta ideia não é de quem está a dar estes passos primeiros no mundo da cozinha. nem olhar para o passado como referência única. é uma filosofia para o acto de cozinhar. a minha. desaparece aqui a ideia do imediato. ou da aparência do sabor. ou da plasticidade num tempo de coisas efémeras. é por isso que o esforço que faço é maior. sempre maior. para me superar. para superar o que sabia fazer, o que vi fazer, o que aprendi. este estado de inconformidade faz de mim um aprendiz de coisas de cozinha. é um passo. um passo muito pequeno. mas essencial.

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