17/11/15

... ecos na cozinha ...


«... quem nos dirá a nós que lá no mar as ondas
não venham ainda a precisar de serem vistas
para continuar a nascer e rebentar...»
ruy belo

... estive a ler o pantagruel. não as receitas. o prefácio. fixo uma frase: «tem de se gostar antes de comer, para depois se saborear com deleite...». já ninguém escreve assim. são ecos de outros tempos. de outros modos. cozinhar é hoje um exercício de vã-glória/vã-cobiça. cada um com o seu caminho. a cozinha é um lugar de egos em vez de ecos. eu gosto muito de cozinhar. cada vez mais. mas não da cozinha que se faz por determinação de um tempo que se perde neste momento em que somos todos cumpridores de um desígnio de espectáculo. levei tempo a descobrir esta identidade para a forma como quero cozinhar. e ainda por cima descobri que estou em contracorrente. isso não importa nada. agora, descoberto o caminho, tenho mais dúvidas ainda. sei ainda menos o que fazer com tudo isto. cozinho hoje muito mais e muito melhor. penso de forma muito diferente o que vou cozinhar e como vou cozinhar quanto tal surge como desafio. aprendi isso com o tempo, com o estudo, com as perguntas e com as respostas. com o que vi, com o que me desafiei a quebrar enquanto limites de mim mesmo. perdi medos. ganhei muitos mais. não sinto que tenha um especial dote para a cozinha. o que sei e faço é por estudo, por racionalização das coisas que procuro conhecer. tenho um terrível hábito de não querer saber o novo nome das coisas antigas. ainda digo frigideira e fritar em vez de sauté e dourar. não sei a diferença entre um molho e qualquer outra coisa. não gosto de emulsionar. gosto de mistura e ligar. é um defeito que cultivo. com muito gosto. o que fazer quando o caminho está definido? sabendo que este, como os outros já tanto escolhidos ao longo da vida inteira estão fora da moda? da tendência, como modernamente se chamam a estas coisas dos rios que correm todos para o mesmo lado. por agora, só aspirar a conseguir ter um ar estúpido. ignorante e inútil. esperar pela onda, a outra, a quem vem sempre depois das primeiras e que é maior. talvez essa seja a minha. talvez um dia chegue o meu tempo ou eu ao tempo certo das coisas da cozinha. não é este. saber o caminho que tenho nas mãos já é bom. esperar é, dizem, uma virtude. talvez de poucos. ou talvez a minha. um dia, quando tudo isto passar, talvez haja em qualquer lugar, um espaço para o que quero fazer com o caminho que descobri para este imenso gosto que tenho por cozinhar. talvez... 

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