04/11/15

... finalmente, perceber ...


«... é tarde
nenhum sono
repõe o que não vivi.
(...)
agora,
resta um único desfecho;
de novo, acordar por dentro...»
mia couto

... escrevinha-se qualquer coisa num papel. faz-se um desenho. um círculo. pensa-se em todos os sabores possíveis. pensa-se que marisco combina com citrinos. faz-se este exercício de memória. de raiz. parte-se depois tudo em pequenos pedaços. fica-se com dúvidas. cada vez mais. e cada vez mais uma insatisfação permanente. a ideia constante que se pode e se sabe fazer melhor. depois, depois pensa-se que é preciso dar um passo de cada vez. este foi mais um passo. pequeno, feito da ideia que, em parte, se conseguiu vencer uma barreira que existia. esta cozinha não é nem nunca será a minha porque lhe perco a mão. porque não tem alguns elementos que gosto muito. a estrutura. a dimensão. a profundidade. a memória. a construção. mas percebi. percebi duas coisas fundamentais. que o sabor final se pode construir por camadas. separando cada elemento que constitui uma conhecida confecção. e que um prato, desta cozinha contemporânea vai sempre ser sustentado por um sabor antigo. maior do que os outros. que, como se diz modernamente, se sobressai no meio de tanta coisa. obriga a pensar. obriga a sair dos lugares onde me sinto mais presente. mais cozinheiro. aqui, tudo se transforma numa estratégia de decoração. decorar um prato. decorar um sabor. dar, a quem come, a possibilidade de escolher como quer comer e o que quer misturar. doce, amargo, salgado, agridoce. falta, por isso, a dimensão da cozinha de tacho. de tempo e de modo. falta aquela ligação única do sabor demorado. isso não é bom nem mau. é diferente. isto, bonito ou não, é só um exercício de estética. nada mais. para quem cozinha importa a superação. para quem aprende, importa o caminho. esse que não nego, faz-me rever as coisas agora. se sei que cozinha é a minha e qual a razão que nela encontro, sei agora, nestes primeiros passos qual a forma que esta também tem. aprender isso é uma conquista. muito pequena, ainda, mas quase improvável há uns tempos. agora, agora é tentar revestir uma confecção de um sentimento. a minha alma triste e cansada seria capaz de produzir algo assim. pensarei nisso. em colocar a nostalgia num prato. a cozinha que gosto coloca a saudade no centro da degustação. da memória que fica. talvez, se conseguir colocar a nostalgia no centro de um prato dela me consiga livrar. nem que seja por instantes...

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