23/11/15

... intemporal ...

 

«... onde me escondia num cantinho de um muro a confundir-me com as pedras como os sapos e os lagartos faziam, isto é quase ajoelhada na terra a respirar-lhe o cheiro misturado no meu cheiro de forma que eu terra também, não tronco e braços e pernas, casulos, plantas, insectos e qualquer coisa que não sabia o que era...»
antónio lobo antunes

... sou um homem da cidade. do campo conheço apenas o que a viagem da vida me deu a mostrar. não conheço todas as plantas, nem o sabor do suor do trabalho de revirar a terra. para cozinhar preciso disso. quando posso passo esse tempo a perceber tudo isso. cozinhar é um acto de conhecimento profundo da natureza das coisas. preciso ser terra para saber os sabores que dela podem sair. cozinhar a sério é isso, para mim. esse mergulho, essa viagem nestas coisas. do mundo retiro as ideias. o pensamento não cessa. gira, regressa, volta em forma de cheiros e sabores. os aromas não são sabores. são aromas. as ervas servem esse propósito. não todas, algumas. as aromáticas. os sabores surgem de outros lugares. da alma dos alimentos. estão lá cativas. é preciso meter as mãos na terra para perceber isso. cozinhar é uma viagem. essa viagem. levada a sério. exigente. que pede de nós toda a vida. toda a percepção das essências. não é para levar em jeito de trabalho. é um caminho. o caminhante sabe que tem que atravessar planícies e montanhas. ter frio e calor. saber esperar. saber perguntar. saber ver e olhar com atenção. escutar. nada vem "embalado". não se mistura tudo para ver o que dá. cada coisa tem o seu lugar. é só atravessar um campo neste tempo de fim de outono e perceber isso. depois, no momento de ter espaço para cozinhar, saber de onde cada elemento surge. ter tudo uma lógica. uma vida. a que se deu para descobrir. descobrir é um trabalho imenso para quem cozinha. tudo sem, quem degusta, saber que foi feito mas que fica lá, no prato, quando alguém prova e sente essa viagem feita de vida dada em função do sonho. vai-se dando imenso da nossa vida à cozinha. chamam-lhe alma. eu chamo-lhe vontade...

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