24/11/15

... modernidade vs tradição ...


 «I think that the important thing with any kind of food culture is that – food is, by definition, made to be consumed relatively quickly. Perhaps you have a cheese or a cured ham that can last for a couple years, but that’s about as long as any food can actually stay intact without disappearing. And this means that if you stop using techniques for food production traditions, if it’s not in practice anymore, it takes one generation for the primary knowledge to be gone. And two generations for the secondary knowledge, the memory, to be gone. And then in three generations, which is not that long, you only have written knowledge or otherwise recorded knowledge, which is not the same thing. And because of this, the food culture changes so quickly, so many of these dishes that we consider to be iconic dishes to our region, they aren’t that old.»
magnus nilsson

cozinhamos no momento em que vivemos. usamos conhecimento edificado ao longo de demasiado tempo em que uma diversidade imensa de mãos, rostos, gestos e desejos se encontraram para fazer de um prato algo de memorável. a nossa cozinha, seja ela fruto de que influências ou correntes sejam, é sempre contemporânea. nisto se misturam todas as coisas. a história e a ciência. a ciência é recente. temos, no máximo, cem anos de uma lógica verdadeiramente científica. esta mudança de paradigma chegaria, como chegou, inevitavelmente à cozinha. ao processo e aos métodos de cozinhar os alimentos. por duas razões fundamentais tal se verifica: a mudança do imediatismo da degustação e a alteração técnica no processo de per si. vamos por partes. hoje, numa sociedade de tempo urbano acelerado, local e vivência temporal que acolhe com maior facilidade o tipo de cozinha dita molecular ou experimental, a mesa representa um local de status assim como de representação. se a ideia de representação social da mesa e do momento de alimentação sempre se reflectiram na história como uma verdade incontornável de encenação da vida, o mesmo não se passa com a forma como tal ocorre.o  tempo dedicado ao acto de comer alterou-se na forma e no modo. a cozinha e o processo de confecção acompanharam este movimento e com isso tiveram uma necessidade imensa de se adaptar. geralmente associada a menus de degustação, esta cozinha experimental quer surpreender mais do que confortar. quer dar-se a falar mais do que deixar os comensais falarem de outras coisas. quer ser o centro da mesa em detrimento de quem lá está e quer tudo isso num tempo médio curto onde, o imediatismo é determinante e cada instante é em si mesmo a tal experiência que se reclama em cada prato. a cozinha típica portuguesa é diferente na razão e na essência disto mas também reclama essa centralidade, embora, na sua razão completamente diferente desta. esta é a maior incompatibilidade entre as duas formas de cozinhar. enquanto escrevia estas linhas recordei uma reclamação de memória que josé avillez referiu recentemente relativamente a um jantar de degustação sobre memórias de infância em que foi convidado a participar. cito: “transportar as pessoas para a minha infância, que provavelmente é também a de muitas delas, em apenas duas colheradas.”. falava de um cozido à portuguesa criado com apenas um elemento de carne e onde todo o sabor estava no caldo. é deste senso e gosto que falo quando refiro a questão do imediatismo e dessa ideia de referência que é antagonizada pelo processo de que falarei a seguir. se a memória é algo de imensamente importante na criação do prato, como podemos assegurar essa referência seja colectiva. é o imediatismo que trata disso. tal como a variedade, necessária para acertar numa referência e tornar a experiência de comer algo conhecido como útil e elemento de puro prazer para que come. é aqui que a cozinha dita molecular ou experimental se separa definitivamente da cozinha típica. é onde, muitas e muitas vezes falha para alcançar o desejado local de referência. esta centralidade da memória que se representa no prato é distinta em cada caso. na cozinha típica portuguesa o que importa é a reunião. na cozinha contemporânea que usa essa referência como elemento de ligação à memória colectiva ou individual, a centralidade é o prato em si mesmo e a “experiência”. mas falemos do elemento seguinte. a alteração substancial no processo. hoje as cozinhas profissionais são dotadas de equipamentos e de recursos (elementos químicos, substâncias reguladoras, etc...) que permitem (ou tentam) em pouco tempo conseguir o que na cozinha típica portuguesa era (e é ainda em muitos casos) feito pelo tempo e por processos ancestrais. se é verdade que muitos procedimentos caíram em desuso e se adaptaram à modernização que a sociedade portuguesa vivemos nos últimos quarenta anos de liberdade e inclusão europeia, também é verdade que há procedimentos que se vão mantendo. por exemplo, desaparecendo quase integralmente a salga dos alimentos de base (carne e peixe) sendo substituídos pela refrigeração, tal ainda se tenta conservar no processo de marinar cada elemento ou deixar a salgar de um dia para o outro, por exemplo para a confecção do cozido já aqui referido. os elementos ancestrais de segurança confundem-se aqui com os elementos de tempero, mas acima de tudo, de saber e sabor de manutenção dos processos de confecção. a cozinha dita molecular ou experimental quer acompanhar este movimento. hoje há um movimento vivido por muitos chefes para reabilitar estes procedimentos onde o expoente máximo é a “maturação” da carne que parece ser moda em construção. mas a isto juntam-se os tais elementos ditos moleculares. porque o tal imediatismo e a alteração do processo e tempo, assim como a alteração sofrida na tecnologia disponível na cozinha actualmente assim o obriga. partem-se processos que não devem sem quebrados e juntam-se intensificadores de sabor, emulsionantes e coisas que tais para conseguir algo que o tempo e o modo da cozinha dita típica ou tradicional consegue fazer em conjunto. fuma-se a carne ou peixe depois de o assar, frita-se ou liga-se tudo em jeito de finalização sem reparar na importância que tem a confecção como um conjunto em si mesmo. é aqui que se separam as águas no que diz respeito a quem confecciona usando elementos da cozinha dita molecular ou experimental e quem percebe a necessidade de a integrar sem alterar essências. faz a diferença essa relação directa e transformadora. faz principalmente diferença no sabor sentido. e na tal referência de memória que tudo liga.
cozinhamos no tempo em que vivemos. as experiências que hoje fazemos serão integradas no futuro. as receitas que julgamos antigas são tão recentes como a distância de duas geração e pouco mais. tenho a plena noção disso. como tenho também a noção que cada prato da cozinha típica portuguesa representa uma evolução de séculos. de transformação. muitas vezes até radical. mas a conjugação entre a cozinha de hoje e a típica ou tradicional não só é necessária como imensamente útil. não viveremos nos tempos passados. viveremos e deixaremos aos que no futuro vão cozinhar novas formas de ver cada sabor, cada processo, cada experiência. o que não podemos alterar, ou devemos alterar, é a centralidade de tudo isto na mesa. este e esse movimento é que está por fazer. retirar a fama e a conversa centrada no prato e no espectáculo que surpreende para o recentrar na memória e na referência e no encontro. a mesa como local de encontro está a perder-se. fruto do movimento imediato e líquidos dos tempos que vivemos. talvez esse seja o maior trabalho que quem cozinha tem que fazer.

“se os senhores se referem à cozinha molecular, tenho o maior prazer em dizer que não a praticamos. lamento também informá-los que ninguém come em museus nem vem aos meus restaurantes para comer as cortinas, só existe uma culinária: a boa”.
paul boucuse

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