15/12/15

... copiar é refazer a memória ...


«...dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma duma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade.
(...)
dão-nos um bolo que é a história
da nossa história sem enredo 
e não nos soa na memória 
outra palavra para o medo...»
natalia correia

... lia recentemente que esta é a época em que alguém, algures, repete uma receita que lhe faz lembrar alguém. alguém e alguma coisa que ficou guardada na memória. os tempos modernos parecem apelar à criação. à desconstrução. a cozinha foi inundada desta ideia que romper o futuro é desfazer o passado para o refazer em novas formas. no entanto, uma vez por ano inundamos as mesas com coisas que nos fazem bem à alma. os sonhos, as rabanadas, as azevias, as broínhas, o bolo-rei, o arroz doce. mas não um qualquer. vamos às gavetas buscar as receitas antigas. às vezes escritas em papeis amarelados ou em cadernos limpos escritos à mão. é quase como se fosse preciso essa certeza das coisas para que o tempo fosse contado. para que se torne real. chamamos ao mundo dos vivos aqueles que as faziam com ninguém. relembramos. fazemos da cozinha uma sala de estar e de ficar em conversa. alguém diz qualquer coisa mais, ali, naquele tempo do fazer para a memória de todos. isto é algo mágico para quem cozinha. sem modernidade, sem alteração. um ritual. um rito imenso que nos faz ser humanos na forma e na razão. percebemos isso quando não procuramos criar mas sim fazer. somente isso. replicar. talvez o exercício mais difícil de todos na cozinha.porque por momentos as mãos que confeccionam deixam de ser as nossas e passam a ser as da nossa história. e de todos os que a partilharam. a do tempo em família. a do tempo das coisas que nos fazem ser quem somos. isto é a cozinha. tudo o resto, imitação...

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