10/12/15

... cozinha, memória e vida ...


«... mas como diminui ou se consome o futuro, se ainda não existe? ou como cresce o pretérito, que já não existe, a não ser pelo motivo de três coisas se nos depararem no espírito onde isto se realiza: expectação, atenção e memória? aquilo que o espírito espera, passa através do domínio da atenção para o domínio da memória...»
santo agostinho

... no canto, o fogão bege. já não existem. de ferro. mas a gás. era sempre assim todos os tempos em que era natal. os sonhos. feitos numa espécie de jarro de inox alto como uma panela pequena de sopa. a colher de sopa era sempre de madeira, a mesma, queimada na ponta. depois dizia, ela, de cabelo branco como a neve: é preciso mexer com muita força. e os braços abraçavam tudo aquilo porque em tudo aquilo colocava o amor que tinha por todos. e por mim. eram os sonhos, dela. serão sempre os sonhos dela. da tia silvia. tenho saudades dela. deixou-me isso. os sonhos. e muito mais. mas como aquilo nada mais. deixou-me sonhos. é algo muito belo para se deixar a alguém. o sabor do natal. e depois, sempre a calda de açúcar com a raspa de limão que tornava um doce simples na mais divinal iguaria. já tentei por centenas de vezes replicar aqueles sonhos. eram e serão sempre os dela. os meus, são os meus. não sabem como aqueles. porque ela ofereceu-me o futuro. aquele futuro de que fala santo agostinho. o do sonhar. do querer saber o que nos reserva o amanhã. com ela percebi isso. que um sabor pode ser memória. a mais doce das memórias. a ela devo isso. e muito mais. faz-me falta comer um sonho, depois outro, depois outro e mais outro. só mais um. pedia o mais exuberante desejo para voltar àquela cozinha e ver fazer tudo aquilo só mais uma vez. há nisto, nisto tudo, toda a magia da imortal sabedoria de um sabor que se oferece para o futuro...

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