26/01/16

... antigamente, novamente ...


«...se fecho os olhos sinto logo esta mão áspera e enorme que me leva na noite húmida e cerrada. não vejo o mar, mas envolve-me e penetra-me o hálito salgado e ouço-lhe ao longe o clamor. no primeiro plano ecoa o desabar ininterrupto, depois, lá ao fundo distingo outra voz mais rouca e para além um lamento que não cessa, donde irrompe de quando em quando um grito. de noite apaga-se o mundo e só esta voz enche o mundo..»
raúl brandão

... são sempre últimos os dias que vivemos. conto o tempo por momentos. este, mais um, na travessia da vida. um que soma. que colocou mais, em mim. que me refez. a cozinha tem todos os segredos do mundo, agora. fiz uma travessia. sou um homem da cidade. na mesa de minha casa serviam-se suflés, cremes, refinadas iguarias de sabor e bom gosto. nelas cresci. na mesa enquanto cerimonial. enquanto hábito familiar. daqui bebi e bebo sempre a inspiração para cozinhar. o bom tem que ser belo. este tempo foi de travessia. porque fui à procura. fiz uma viagem no país e dentro de mim mesmo. fui procurar a raiz das coisas. sempre precisei disso. de perceber. de entender. de conhecer. o fazer por fazer nunca fez sentido para mim. fui numa viagem neste tempo de cozinha. da sofisticação de uma gastronomia urbana, de lisboa e porto, do luxo de uma mousse de vinho moscatel acompanhada de uma redução do mesmo vinho até ao mais simples que se pode fazer como uma tomatada à alentejana ou um caldo de fumeiro feito ao lume. antes de me aventurar no mundo precisei de conhecer essa terra. a minha. pelo sabor. fiz, criei, recriei. retive receitas. estudei muito. fui conversar. falei, vi fazer como se fazia há quarenta ou mais anos atrás. pedi para fazer. revi o que sabia enquanto comensal agora do ponto de vista de quem tem que cozinhar com respeito e memória. sabendo o que está a fazer e porque o está a fazer assim. é tão difícil fazer um caldo num pote de ferro como é cozer algo a baixa-temperatura num equipamento desenhado pela ciência, disso não tenho dúvida nenhuma. mas a mim, como aprendiz, importava a cozinha de raiz. aquela sem artimanhas. sem mais nada que não seja o tempo e a natural condição de ser feita naturalmente. seja ela urbana ou rural. seja ela elaborada ou simples. seja ela feita em forno a lenha ou eléctrico. foi uma procura que continuarei. pela cozinha do meu país. com os produtos de perto. feitos por mãos experientes que passam de geração em geração. fugindo da industrialização da memória e da tradição. há num sabor genuíno algo de espantoso. algo que já nos fomos desabituando. são os dias para parar e pensar nisto. e terminar, por agora, esta viagem de quem aprende com um caldo de castanhas e carnes de fumeiro que representam tudo aquilo que esta viagem me fez ganhar nas mãos. que seja este o começo. porque o que sabemos agora é que o sabor é uma miragem mas a memória é tudo o que temos para salvar da nossa cozinha. bela e boa. sempre...

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