30/01/16

... fim de um tempo ...


«...aprendamos um pouco, isso e o resto, o próprio orgulho também, com aqueles que do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação...»
josé saramago

... quando terminei, há mais de duas décadas, um ciclo de aprendizagem uma professora que ainda hoje relembro perguntou: o que quer ser? respondi: ermita e viajante. ninguém queria ser nem uma coisa nem outra. a resposta deu-me direito a ir ter apoio na escolha para o futuro do medo que a minha loucura fosse real. hoje, terminando um tempo, novamente, de aprendizagem, desta vez na arte de cozinhar com referências e memória, sinto o mesmo. que o caminho que vou fazer e que fiz foi sempre guiado por estas duas linhas. esta minha essência. ermita e viajante. foi um tempo de reclusão em mim mesmo. um tempo de reflexão. de encontro com aquilo que deixei (e foram décadas de trabalho, ensino e investigação) e com os caminhos que se abriam pelos aromas, sabores e saberes que queria e quero descobrir. não consigo estar na cozinha sem o estudo. sem saber o que estou a fazer e porque o estou a fazer. sem a história das coisas a que chamamos típicas. sem a genuinidade de tudo isso. sem saber explicar cada coisa que crio. aprendi. sinceramente, neste ano e pouco, aprendi. por duas razões. porque estudei. e porque perguntei. depois, observei. pedi para me ensinarem quando não sabia. por isso, aprendi. pensei sempre. porque me deram, chefes e formadores, do seu tempo e da sua experiência aquilo que sabiam. o que sabem. nunca me disseram que não. aprendi e devo-lhes isso na cozinha que farei. a eles e para eles fica a minha gratidão por isso. aos colegas, a viagem. a companhia da viagem. as conversas e as partilhas. tudo junto fez com que a alma da cozinha fosse invadindo a minha vida. fosse tomando um lugar que não mais desocupará. não sei, findo este tempo, se cozinho bem ou mal. isso pouco importa. sei que cozinho para os outros antes de o fazer para mim. sei que cozinho com razão e saber. sei que usarei sempre a jaleca branca de aprendiz. sei que é à raiz da cozinha típica que irei sempre buscar a lógica de tudo o que venha a fazer. sei que o sabor não existe mas se lhe dermos uma essência ele prevalecerá sobre todas as outras coisas. sei que nunca deixarei de amar a nobre arte de cozinhar. se isso faz de mim um cozinheiro, não sei. nunca saberei. isso faz de mim alguém que estará sempre em viagem. real ou interior. mas sempre à procura. a tentar aprender. a estudar. e depois, depois na solidão do pensamento, entregarei aos outros aquilo que sei, em forma de comida. em forma de um prato criado, de uma iguaria imaginada, de uma criação. de um salgado ou de um doce. que seja reconforto para a alma, dos outros. que seja, alegria, nem que seja por um instante. que roube o desejado sentimento: isto está bom! ermita, a cozinha será o meu refúgio. sempre. lá sinto-me em casa. como se fosse possível tal coisa. devo, à vida tudo o que me deu até agora. e aos mais próximos, uma imensa dívida de gratidão por caminharem ao meu lado. num tempo mais difícil do que alguma vez podia ter imaginado, foi por eles esta travessia. mas também é para eles, sempre, em primeiro lugar, o sabor e a presença. agora. e sempre. a cozinha, essa, continuará na minha vida. seja profissionalmente, seja como lugar de refúgio. porque é a minha alma que dela depende. as mãos, que aprenderam, sabem agora isso melhor do que qualquer outra coisa. que seja assim e se abra o futuro. cá estaremos para o encontrar, como eterno ermita, viajante e aprendiz...

Sem comentários: