18/01/16

... a loucura da cozinha ...


«...não tenhas medo de estares a ver a tua cabeça a ir directamente para a loucura, não tenhas medo! deixa o medo! deixa-a ir até à loucura! ajuda a ir até à loucura! ajuda a ir até à loucura! ajuda-a a ir até à loucura. vai tu também, pessoalmente, com a tua cabeça até à loucura! a tua cabeça até à loucura!...»
 almada negreiros

... vivemos neste tempo das coisas mais belas. a cozinha procura o belo. tal como, alguns dizem, procura o sabor. sempre o tal sabor. sem ninguém saber ao certo que isso é. é, para mim, hoje simples o que é isso que alguns nos querem vender como belo e bom. é a fuga. o sair. da loucura do quotidiano. da comida que se come. quer-se surpreender. tirar do correr dos dias. levar o comensal a outro lugar. para outro espaço. do impossível. aquele que não se consegue no dia-a-dia. porque o belo exige o tempo inteiro. a dedicação. a coisa feita com coisas que não se conseguem ter em casa. com sabores que não se conseguem criar em casa. é vender a ilusão de uma nova coisa real o que se faz quando se cria um menu de degustação que agora ganha o epíteto de experiência gastronómica. em tudo se vendem experiências. como se a vida não fosse a maior de todas elas. e o tempo, que não existe, não fosse só a nossa medida para somar e dar sentido a essa linha de cortes sucessivos que nos fazem ser quem somos. as experiências. quando isto chega à cozinha, aos momentos e às criações, sabemos que não estamos a vender comida. e agora que tenho por obrigação pensar assim também, penso nisso. não é comida o que ali está. é um universo alternativo. um doce pecado de imortalidade como diria o poeta. é isso que fica em cada prato. porque não será repetido. porque é só isso mesmo, um nada. uma coisa nenhuma transvestida de coisa alguma em forma de experiência. torna-se o mundo redondo assim. vai-se ao restaurante para provar momentos. coisas às quais esperamos a alma e a alegria que nos faltam. esquecemos que é na certeza das coisas simples que reside a nossa razão. aquilo que nos dá a razão. naquele jantar no restaurante de família com a mousse de chocolate que é a mesma desde que temos memória. há lugar para tudo. até para esta cozinha experiência. sinais dos tempos, frutos dos tempos sem memória e só somatório de instantes. sem ligação. que o menu pede e exige, existindo para o cumprir. mas no final, depois de fechadas as portas, o dia espera quem a ele regressa. que seja fuga, então. e assim se cozinhe. para que não seja só, talvez, um instante de alegria no meio disto tudo que é vida...

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